Considerado a grande contradição do sistema elétrico brasileiro, o chamado curtailment – corte de geração de energia renovável, limpa e barata, pelo Operador Nacional do Sistema (ONS), para não sobrecarregar o sistema elétrico durante o dia – deve crescer 300% nos próximos dez anos, mesmo com a inauguração de linhas de transmissão, os linhões, para acomodar a sobreoferta de energia renovável injetada na rede.
A projeção, da consultoria Wood Mackenzie, estima que a taxa média de corte no Sistema Interligado Nacional (SIN) em todo o País passará de cerca de 2% em 2025 para 8% em 2035.
Hoje, 89% da matriz elétrica brasileira vem de fontes renováveis. O curtailment ocorre quando a geração de energia é reduzida, seja por razões elétricas (como a capacidade limitada de transmissão) ou energéticas (como excesso de oferta no sistema).
O ONS intervém para dar estabilidade ao sistema, mas os cortes afetam a rentabilidade das usinas, que deixam de gerar e vender energia em momentos de pico. Os prejuízos com os cortes nos últimos dois anos chegam a R$ 2 bilhões.
Como a maior parte da energia renovável é gerada no Nordeste, a região deverá ter cerca de 11% de corte médio nos próximos dez anos, em contraste com os 2% de curtailment projetados para as regiões Sudeste e Centro-Oeste, de acordo com a Wood Mackenzie.
Os cortes são necessários porque o crescimento do sistema elétrico não está acompanhando o ritmo da expansão das renováveis, especialmente durante o pico de geração solar, entre 8h e 17h.
Desde 2021, o parque gerador no Nordeste praticamente dobrou, saindo de 21,1 gigawatts (GW) em operação para 39,4 GW em fevereiro de 2025, considerando apenas as usinas renováveis de maior porte da região.
A curva crescente de curtailment ocorre mesmo diante da expansão da capacidade de transmissão entre Nordeste e Sudeste. A rede de linhões deve ultrapassar 30 GW até 2035.
“Mesmo com 11 GW de nova transmissão previstos até 2029, os cortes continuarão crescendo exponencialmente”, adverte Marina Azevedo, analista sênior da Wood Mackenzie.
Na semana passada, o Ministério da Fazenda enviou ofício à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) defendendo que a micro e minigeração distribuída (MMGD) passe a participar do “rateio” do curtailment discutido pela agência reguladora por meio da consulta pública 45/2019.
A consulta pública discute a ordem de priorização dos cortes de geração de energia elétrica e o estabelecimento de uma espécie de “condomínio” de renováveis, que rateariam o efeito dos cortes entre si, ainda que o ONS opte por fazer a redução da geração concentrada em ativos específicos por necessidades da rede.
Tratamento diferenciado
A MMGD faz parte do conceito de Geração Distribuída (GD), que é o nome dado à energia produzida na unidade consumidora ou próximo a ela dentro de uma rede de distribuição local.
Denomina-se microgeração distribuída a central geradora com potência instalada de até 75 quilowatts (KW). Já minigeração distribuída é aquela com potência acima de 75 kW e menor ou igual a 3 megawatt (MW).
A MMGD já ultrapassou 40,4 GW de capacidade instalada - com mais de 3,6 milhões de sistemas conectados à rede de distribuição- e deve atingir 53 GW até 2029. Mas opera sem supervisão ou controle operacional pelo ONS.
Na consulta, muitos agentes sugeriram que a MMGD faça parte desse rateio em relação aos cortes classificados por razão energética, já que a geração solar intermitente descentralizada contribui com a necessidade do ONS em fazer os cortes durante horários de pico de geração, principalmente por sobreoferta na rede.
O ofício do Ministério da Fazenda afirma que a concentração dos cortes nos geradores centralizados, sem considerar a MMGD, representa “tratamento diferenciado e desproporcional de alocação de custos operacionais entre os agentes”.
Como o corte físico da MMGD não é possível, pelo menos por enquanto, a Fazenda diz que seria “plenamente viável” que os ajustes contábeis das operações para fins de operação do Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE) considerem os cortes por razão energética.
A sugestão do Ministério da Fazenda foi feita dias após o ONS ter publicado relatório técnico que identificou forte peso da MMGD no curtailment.
No documento, o operador afirmou que, se houvesse rateio proporcional das restrições entre todas as fontes, incluindo MMGD e GD, os cortes nas usinas centralizadas poderiam ser reduzidos em até 50%.
A potencial inclusão da MMGD no rateio do curtailment, contudo, mobilizou as empresas que atuam no segmento.
José Marangon, consultor e conselheiro da Associação Brasileira de Geração Distribuída (ABGD), afirma que o relatório técnico do ONS indica que o curtailment por energia irá prevalecer sobre o de confiabilidade.
Ele esclarece que o corte energético é relativo ao excesso de geração nos horários em que o sol brilha e não necessariamente representa um excesso de energia.
“Isto é confirmado pela bandeira vermelha, que significa que estamos necessitando ligar térmicas, pois tem pouca energia disponível nas outras fontes”, diz. “A solução é deslocar esta abundante energia do sol para outros horários e não culpar a MMGD e a GD.”
Segundo ele, o armazenamento aparece como uma solução e hoje, com as tecnologias de armazenamento eletroquímico (baterias), pode-se acertar este descompasso da demanda e a geração junto à própria carga.
“O corte contábil como solução não vai resolver o problema físico e vai acabar trazendo uma série de acionamentos na Justiça, pois o consumidor final quer ter a sua própria geração”, adverte Marangon.
Isso porque a MMGD é um abatimento da carga do próprio consumidor e não uma energia comercializada no mercado livre. “Outro ponto importante é que o corte contábil acaba emitindo para os investidores um sinal errado, agravando o curtailment físico”, complementa.