A Medida Provisória 1.300/2025, baixada no final de maio pelo governo federal com as diretrizes de uma reforma do setor elétrico, pode ter surpreendido o consumidor comum com as novidades prometidas – entre elas, a ampliação da tarifa social da conta de luz, que deverá beneficiar cerca de 60 milhões de consumidores.

Boa parte das empresas que atuam no mercado de energia, porém, já está se preparando há anos para o grande atrativo previsto pela MP - a abertura do Mercado Livre de Energia para indústria e comércio da chamada baixa tensão em 2026 e para a população em geral, no ano seguinte.

Essa abertura está sendo comparada a outras grandes reformas, como do setor de telefonia, que permitiu aos consumidores escolherem a operadora de celular de preferência, com base nos valores e serviços oferecidos.

Na prática, as empresas geradoras vão brigar por um mercado potencial estimado entre 60 e 90 milhões de consumidores, dependendo do perfil, e avaliado em R$ 250 bilhões.

Hoje o mercado de energia está dividido em três setores. Cerca de 85 milhões de consumidores de energia elétrica estão no mercado regulado, que inclui clientes residenciais e pequenas empresas - presos à fatura da conta de luz das distribuidoras, que detêm monopólio do serviço em cada estado. Esse segmento responde por cerca de 60% do consumo nacional.

O Mercado Livre de Energia, por outro lado, possui apenas 70 mil unidades consumidoras. São empresas e indústrias de grande porte que consomem cargas de alta tensão, e por isso são responsáveis por cerca de 40% do consumo nacional de energia.

O terceiro nicho é formado por 5 milhões de consumidores com créditos de micro e minigeração distribuída (MMGD) que utilizam a geração própria de energia elétrica, principalmente por meio de energia solar e eólica, respondendo por mais de 10% da produção de energia elétrica do País. O excedente produzido pela chamada Geração Distribuída (GD) é injetado no sistema.

O grande desafio relatado por representantes de quatro empresas de energia de diferentes áreas de atuação no setor ouvidos pelo NeoFeed será o de captar para o mercado livre os consumidores que hoje estão no mercado regulado de grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro, a partir de 2027.

São os que mais obteriam vantagens em poder escolher seu fornecedor de energia. Como esse público jamais imaginou que isso pudesse ocorrer, a briga vai exigir das empresas de energia um massivo investimento em campanhas educacionais e estratégias de captação de novos clientes, com uma guerra de preços que deve dividir geradoras e comercializadoras.

Para João Carlos Mello, CEO da Thymos Energia, consultoria que atua no setor, o Brasil deve olhar para a experiência de outros países que fizeram abertura do mercado de energia para tirar lições.

Segundo ele, o estado do Texas, nos Estados Unidos, é referência mundial em liberalização do setor elétrico, operando desde 2002 sob um modelo de varejo totalmente aberto. Cerca de 85% a 90% da carga do estado está no ambiente livre, cobrindo aproximadamente 9 milhões de unidades consumidoras.

O mercado varejista no estado americano registrou uma queda de 10,8% nas tarifas ao longo de 15 anos, superando o desempenho do mercado cativo no mesmo período. Mello, no entanto, acredita que, pelas características do mercado brasileiro, a abertura aqui deverá seguir um ritmo mais lento.

“O mercado livre deverá crescer de forma paulatina, acrescentando até 50% dos consumidores que seriam elegíveis”, diz, referindo-se aos que hoje estão no mercado cativo. “Esse mercado potencial, porém, se limita no máximo a 60 milhões de consumidores, os demais não contam porque estão na faixa da tarifa social.”

Para o executivo da Thymos, na comparação internacional, todos os mercados são parecidos, cada um com suas características. Neste sentido, o da União Europeia – que se abriu totalmente em 2007 – tem o modelo regulatório que mais se assemelha ao brasileiro.

Transição

Mello chama a atenção para para algumas pendências do período de transição. A começar pela MP, que terá 120 dias de tramitação para consolidar o processo, que deve abordar questões como subsídios para renováveis, como ficam as distribuidoras e o curtailment, os cortes de geração renovável pelo Organizador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) para não sobrecarregar o sistema.

“Ainda não temos relator, mas a MP já recebeu 600 emendas e vários temas a serem inseridos podem modificar o teor original da medida, por isso a atuação do relator será fundamental”, adverte.

Com isso, a definição de regras vai estabelecer os limites do mercado. Melo cita entre pontos importantes a serem definidos a distribuição dos encargos, hoje concentrados no mercado regulado e que devem ser redistribuídos com o mercado livre.

“Num primeiro movimento, quem mais precisa de desconto na conta de luz deve procurar o mercado livre, mas quem migrar terá de levar a ‘mochilinha’ – o que paga a mais de encargos no cativo -, para não onerar quem fica”, diz.

Por isso, talvez a economia nessa migração não seja tão grande. “A geração distribuída, por exemplo, é imbatível no varejo, mas os benefícios da GD começam a diminuir a partir de 2035, num processo de diminuição escalonada”, ressalta.

Sobre o perfil do novo mercado, Mello diz que os R$ 250 bilhões são divididos em geração (R$ 100 bilhões), transmissão (R$ 35 bilhões), distribuição (R$ 65 bilhões) e encargos (R$ 50 bilhões). O total cresce para R$ 350 bilhões se forem contados os impostos (R$ 100 bilhões).

As distribuidoras de energia, que têm monopólio nos estados, podem perder clientes, mas devem seguir no jogo, pois já atuam no mercado livre e na GD por meio de outras empresas de suas holdings.

Para consultor, GD é imbatível no varejo, mas benefícios terão redução escalonada a partir de 2035

Para Luiz Fernando Leone Vianna, vice-presidente Institucional e Regulatório do Grupo Delta Energia - uma das principais holdings do setor no País -, está claro que um dos benefícios mais perceptíveis com a abertura do mercado é a redução da conta de luz.

“A tarifa de energia média das distribuidoras é de R$ 297 MWh (Megawatt-hora), enquanto o preço de longo prazo do mercado livre fica em R$ 156 por MWh”, diz ele.

“Há ainda outras vantagens da abertura completa do setor que merecem destaque, como qualidade e inovação nos serviços; possibilidade de oferecer um produto de acordo com a necessidade de cada consumidor; e adoção de fontes renováveis, dando liberdade de escolha aos fornecedores que utilizam energias limpas”, acrescenta.

Vianna observa que a abertura chegou com atraso de quase duas décadas. Como o governo acabou optando por uma abertura gradual e faseada, várias empresas de energia sempre tiveram a abertura do mercado na mira de seus investimentos de médio e longo prazo.

A Delta, por exemplo, abriu há três anos uma frente varejista em GD por meio da criação da empresa LUZ, que hoje conta com 25 fazendas solares em operação, atendendo consumidores de 1.137 cidades em seis estados, além do Distrito Federal.

Com taxa de retorno elevado - entre 12% a 25% ao ano, dependendo do modelo de negócio e localização -, uma varejista que produz energia nas fazendas solares vende via aplicativo para o consumidor, que “aluga” um pedaço dessa usina com desconto de 15%, em média, na conta de luz, em relação ao boleto cobrado das distribuidoras.

Vianna acredita que a abertura vai provocar uma reorganização do setor: “Nem todas as comercializadoras vão entrar nesse novo mercado livre ampliado a partir de 2027, podem continuar só no grande varejo ou no trading direcional, sem vender direto ao consumidor, limitando-se a fazer a gestão.”

Rafael Zanatta, diretor comercial e de operações da Bow-e - startup criada em 2022 pelo grupo Bolt para atuar no segmento de GD – também prevê uma sacudida no mercado. Segundo ele, a abertura vai exigir das empresas que atuam em GD e no mercado livre repensar seu modelo de negócio. Isso porque o consumidor não está preparado para o que virá pela frente.

“Hoje, na GD, que é um mercado muito regionalizado, já precisamos fazer ações locais para conquistar clientes”, diz. “Com a abertura, teremos ações nacionais, com empresas de energia patrocinando camisas de times de futebol, a novidade de o consumidor poder escolher quem será seu fornecedor de energia certamente vai virar pauta no Jornal Nacional.”

A briga por novos clientes, prevê, será maior em São Paulo e no Rio de Janeiro - cidades que têm a maior densidade demográfica do País, a maior quantidade de clientes potenciais e onde há menor oferta de GD, que hoje oferece o melhor preço de energia para o consumidor do mercado cativo.

Para “fisgar” esse mercado potencial, Zanatta sugere estratégias ousadas, como parcerias das geradoras com empresas de outros segmentos do varejo com grande número de clientes em seu portfólio – operadoras de celular, bancos digitais, de cartão de crédito e etc. A ideia seria formar “combos” em que o fornecimento de energia faria parte de um pacote de ofertas com outros benefícios.

Executivo prevê disputa por consumidores do mercado regulado de grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio

Neste sentido, entrará em cena um novo modelo de risco, com comercializadoras lutando por preços melhores. Por isso, o executivo da Bow-e acredita que o mercado livre atual está pronto para operar a indústria, mas não para o varejo.

“A abertura não garante economia imediata para clientes de baixa tensão, sem uma regulação robusta  haverá migrações mal orientadas e talvez desequilíbrios de preços entre cativos e livres, dependendo de como vier essa regulamentação”, adverte.

Paula Misan Klajnberg, CEO e cofundadora da Electy – startup que atua como marketplace de energia, conectando consumidores de 21 estados diretamente a mais de 30 distribuidoras e dezenas de usinas solares -, prevê um “choque de realidade” com a abertura.

“Não vai ter quebradeira, e sim aglomeração, porque teremos muita demanda de energia, o que vai exigir otimização de custos, de processos e, principalmente, de preços: os geradores vão ter de saber como calcular o melhor preço, o que vai gerar grande concorrência”, afirma Klanjberg.

Ela cita como exemplo o caso hipotético de uma rede de farmácias que já fechou um contrato de 20 anos com um gerador com preço fixo. “Com a abertura, essa rede pode cancelar o contrato e procurar preço mais barato; terá de pagar multa, mesmo assim o gerador terá de fazer uma adaptação do preço, essa será a nova realidade”, adverte.

Essa guerra de preços, diz ela, tende a afastar os pequenos geradores da venda direta ao varejo: “Quem tem três fazendas solares, por exemplo, pode preferir arrendar para os grandes venderem para o consumidor final para fugir dessa guerra de preços.”

Como atua como  marketplace, a empresária prevê que a Electy tende a expandir seus negócios. Sua plataforma vem crescendo fazendo parceria com grandes empresas. Com a Natura, por exemplo, oferece descontos na conta de luz para 260 mil consultoras que fechem contrato de energia por assinatura com geradores parceiros.

“Vai se dar bem quem oferecer o melhor preço e tiver o melhor pós-venda; como as empresas de energia não sabem como atingir o consumidor - e somos especialistas em ensinar os benefícios a ele -, deveremos ganhar escala”, assegura ela.