A disputa pelo bilionário mercado de geração distribuída (GD) envolvendo as comercializadoras e as distribuidoras de energia, avaliado em R$ 140 bilhões, ganhou escala com uma série de denúncias contra as distribuidoras, acusadas de concorrência desleal e alvo de um projeto de lei em discussão no Congresso Nacional.
O Projeto de Lei 671/2024, apoiado pelas empresas de energia solar, passou por uma audiência conturbada esta semana na Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados e pode ir à votação em até duas semanas.
Proibidas por lei de desempenhar atividade de geração ou de comercializar energia via GD - atuações estranhas ao seu objeto de concessão, limitado à distribuição de energia -, as distribuidoras estão sendo acusadas de barrar pedidos de conexão à rede feitos por outras comercializadoras, alegando que o sistema está sobrecarregado.
Na audiência na Câmara, surgiu outra acusação, ainda mais grave, que vai além de uma possível má vontade das distribuidoras – elas estariam usando outras unidades de seu grupo, com outro CNPJ, não só para comercializar energia como para aproveitar os pedidos das outras comercializadoras para oferecer conexão a empresas que tiveram seu pedido barrado.
O PL, com relatoria do deputado Lafayette de Andrada (Republicanos-MG), tem como objetivo justamente vedar a atividade de micro e minigeração distribuída de energia (MMGD) por distribuidoras ou empresas de um grupo econômico que atua na distribuição.
Por trás da disputa, vem à tona um problema que permeia o setor elétrico nacional: o crescimento desordenado da GD, de 35% apenas este ano, impulsionado por subsídios generosos para as fontes renováveis, em especial para a energia solar.
Esse crescimento está distorcendo o mercado de energia e levando ao limite a capacidade do sistema de atender a demanda do consumidor comum, que recebe energia das distribuidoras.
O fato é que a GD ajudou a transformar a energia solar num grande negócio, por permitir a geração de energia elétrica no local ou próximo ao ponto de consumo e colocar o excedente no sistema.
Concentrada nos painéis fotovoltaicos que captam energia nos telhados, o segmento de geração distribuída deve fechar o ano com cerca de 35 gigawatts (GW) em capacidade instalada, o equivalente a mais de duas usinas de Itaipu.
Novo nicho
A atual crise é resultado de um desdobramento do boom da energia solar – o surgimento de um modelo de negócio mais sofisticado e lucrativo do que a instalação de painéis fotovoltaicos nos telhados das residências, que já garantia subsídios na conta de luz até 2045.
Avaliado em R$ 40 bilhões, atrai empresas que investem numa fazenda solar, com vários painéis fotovoltaicos (com capacidade máxima de 5 MW, suficiente para atender 3 mil residências). A fazenda solar produz energia e vende via aplicativo para um consumidor, que “aluga” um pedaço dessa usina com desconto de 15%, em média, na conta de luz.
A nova modalidade, que não exige que o cliente tenha painel solar, também é beneficiada pelos subsídios das fontes renováveis e não paga nada à distribuidora para transmitir a energia. O público-alvo das fazendas solares são empresas que consomem muita energia, como comércio de pequeno e médio porte, mas não suficiente para migrar para o mercado livre.
Na prática, as fazendas solares oferecem preço mais baixo na conta de luz do que o cobrado pelas distribuidoras e, além de “roubar” seus clientes com maior tíquete, indiretamente exigem mais investimento da concessionária para aumentar a capacidade de transmissão do sistema. Apesar da distorção, a atuação das fazendas solares é assegurada pela Lei 14.300, de 2022.
A taxa de retorno das fazendas solares, calculado em 35% ao ano pela Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), explica o crescimento desse nicho e também a reação das distribuidoras, que entraram no negócio por meio de outras empresas do grupo.
A audiência na Câmara colocou lado a lado as partes envolvidas na disputa. Representantes de entidades que atuam no segmento de GD, como Associação Brasileira de Geração Distribuída (ABGD), INEL (Instituto Nacional de Energia Limpa) e a FMGD (Frente Mineira de Geração Distribuída), fizeram acusações graves, contestadas pela Abradee.
Boa parte das denúncias de irregularidades está concentrada em Minas Gerais, estado que atrai instalações de fazendas solares pelo preço baixo do terreno e incentivos fiscais oferecidos pelo governo estadual.
A grande demanda de instalações levou a Cemig, concessionária local, a alegar sobrecarga do sistema para barrar cerca de 80% dos pedidos de conexão à rede, de acordo com as comercializadoras. Mas Wedson dos Reis Alves da Silva, presidente-executivo da FMGD, citou o caso da Universidade de Viçosa como exemplo de suposta atuação desleal da Cemig.
“O integrador tinha procurado a universidade para fazer a instalação, propôs o projeto, assinou o contrato com essa universidade e, um tempo depois, teve resposta da Cemig Distribuição falando que era impossível, cobrando R$ 4 milhões para fazer a melhoria de rede para fazer a inserção nesse sistema. Dois meses depois, um sistema já estava sendo instalado pela própria Cemig”, contou na audiência.
Procurada, a Cemig negou em nota praticar a irregularidade, esclarecendo que “trata com total isonomia todas as empresas de geração distribuída (GD), sem qualquer distinção, atuando de acordo com a regulação existente, de forma técnica e responsável”.
“Boi de piranha”
Levantamento da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar) indica que, no primeiro semestre, foram recusados pedidos de conexão à rede em Minas Gerais com investimentos que somam R$ 10 bilhões.
Bárbara Rubim, vice-presidente de geração distribuída da Absolar, diz que o argumento das distribuidoras de que as fazendas solares sobrecarregam o sistema não se sustenta. “Do total de produção fotovoltaica do País, 75% são de painéis instalados em telhado, as fazendas solares viraram boi de piranha para as distribuidoras recusarem pedidos de conexão.”
Outro representante do setor, Carlos Evangelista, presidente da ABDG, aponta dois problemas em relação à recusa das distribuidoras em fazer a conexão. Um deles é um problema técnico chamado inversão de fluxo de potência – que ocorre quando um sistema solar instalado em uma unidade consumidora gera mais energia do que esta consome.
“Esse problema ocorre em determinados horários e só a distribuidora dispõe dessa informação”, diz Evangelista. “Além disso, é comum as distribuidoras não cumprirem o prazo para analisar o pedido de conexão, jogando fora milhões de reais de investimento de uma empresa para montar uma fazenda solar; mesmo indo à Justiça, a resolução demora.”
Em entrevista ao NeoFeed, Marcos Madureira, presidente-executivo da Abradee, que representa as distribuidoras, rebateu as acusações do segmento solar e enfatizou que o PL apresentado na Câmara não tem base legal.
“O PL é contrário à Lei de Liberdade Econômica que assegura o direito à iniciativa privada”, diz Madureira. “As distribuidoras não fazem investimentos em geração distribuída, são impedidas por serem concessionárias, o que existe são grupos econômicos que atuam em transmissão, geração, distribuição e comercialização há algum tempo, e que também têm empresa de geração distribuída no seu portfólio.”
Em relação à Cemig, o presidente da Abradee afirma que a fiscalização efetuada pela Aneel não encontrou indícios de irregularidades. “Há, sim, um grande número de pedidos de conexão à rede em todo o País, numa média de 60 mil solicitações mensais”, afirma Madureira.
Em uma mostra de dinamismo das distribuidoras, segundo ele, o volume de conexões efetuadas foi de 70% em relação ao total solicitado, “o que desmente a ideia de que estaríamos barrando a maioria dos pedidos”.
Madureira admite, porém, a saturação em alguns locais do número de pedidos de conexão à GD, citando inversão de fluxo de potência em alguns horários. “É um problema técnico que já passou da GD e começa a afetar o sistema interligado nacional como um todo”, diz.
Para o presidente da Abradee, os subsídios continuam sendo o pano de fundo dessa crise que atinge a geração distribuída. “O que vemos é o Congresso Nacional com vários projetos de lei propondo ampliar os prazos para o uso de subsídios, o que só agrava a distorção na GD”, afirma Madureira.
Ele também propõe uma discussão de endereçar o problema técnico que atinge a geração distribuída, como o uso de baterias para armazenar a energia excedente e jogá-la no sistema quando a demanda for maior, tendo em vista o preço adequado.
“Por isso, as distribuidoras veem o projeto de lei como uma forma de puni-las pelas dificuldades que estão sendo provocadas pelo próprio segmento de geração distribuída”, diz Madureira.