O setor elétrico mergulhou em uma crise em duas frentes, envolvendo de um lado uma disputa entre o governo federal e a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), órgão regulador do setor, e de outro uma contestação do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre os contratos de assinatura das fazendas solares, que passarão a ser fiscalizados pela Aneel.

Os dois casos trouxeram à tona questões pendentes que vinham sendo discutidas há tempos por especialistas do setor. Uma delas é a relação conturbada do atual governo com as agências reguladoras, que são independentes e alvo de pressão por maior influência política por parte do Executivo.

Outra questão em aberto é o impacto no sistema elétrico gerado pelas fazendas solares - usinas solares fotovoltaicas de grande porte que utilizam os subsídios oferecidos pela Geração Distribuída (GD) para vender energia direto para o consumidor comum, que paga um valor mensal de assinatura abaixo da conta de luz, sem precisar instalar um painel no telhado.

Os dois casos reforçaram argumentos de especialistas para uma reforma no setor elétrico, impactado pelas disputas políticas e avanço rápido das energias renováveis, com subsídios que dobraram em cinco anos, atingindo R$ 40,3 bilhões em 2023.

A disputa entre o governo federal e a Aneel ganhou um componente político na terça-feira, 19 de agosto, quando o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, subiu o tom ao questionar a morosidade da Aneel em regulamentar propostas da pasta para o setor elétrico. Silveira ameaçou intervir na agência reguladora, utilizando ferramentas legais disponíveis.

As propostas que a Aneel estaria retardando a regulamentação incluem duas medidas provisórias. Uma delas, a MP 1212, possibilitou a securitização e o pagamento antecipado de empréstimos para reduzir contas de luz. Silveira cobrou a divulgação do impacto tarifário percebido pelos consumidores após a negociação dos recebíveis da privatização da Eletrobras, prevista na MP.

A outra, MP 1232, é referente à transmissão do controle da Amazonas Energia. A MP já estava em discussão, mas a edição só ocorreu após a Âmbar Energia adquirir as usinas geradoras da Eletrobras. É importante ressaltar que a concessão da transmissora, que é a beneficiária da MP, ainda está em análise na Aneel, que ainda não publicou as minutas dos Contratos de Energia de Reserva (CER), como exige a MP.

“A persistência desse estado de coisas impelirá este Ministério a intervir”, diz trecho do ofício assinado por Silveira e enviado ao diretor-geral da Aneel, Sandoval Feitosa, a quem deu cinco dias de prazo para uma resposta. Em nota, a Aneel diz que a análise de processos é de responsabilidade dos diretores, que são independentes.

Influência

Para Rodrigo Figueiredo, sócio do escritório RVF Advogados e especialista em questões regulatórias, a disputa reflete um embate maior sobre a influência governamental nas agências reguladoras.

“A Aneel, ao responder aos questionamentos do Ministério de Minas e Energia no prazo que considera adequado, está agindo dentro de sua competência e de acordo com a base legal que rege sua atuação”, adverte.

Luiz Eduardo Barata, presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia - coalizão formada por 16 entidades de consumidores que representa todas as classes de consumidores (residencial, industrial, comercial e sistemas isolados) -, disse que a disputa entre governo e Aneel não é recente e afirmou que está na hora de se buscar uma solução.

“O ministro tem razão em cobrar agilidade da Aneel, que já faltou com celeridade em questões até mais importantes, mas o governo ainda não indicou um nome para ocupar a última vaga da diretoria da agência em aberto”, diz Barata, também endossando a tese de que a disputa se deve a questões políticas - cabe ao governo a indicação de nomes para a diretoria da Aneel e ao Senado, a aprovação.

Já o questionamento do TCU quanto aos contratos de fazendas solares trouxe preocupação ao segmento, um mercado de R$ 5,2 bilhões que fornece energia a 362 mil residências e estabelecimentos comerciais, com uma capacidade instalada de 1,2 gigawatts (GW).

A micro e minigeração distribuída de energia (conhecida pela sigla MMGD) é um dos modelos criados para que uma usina solar fotovoltaica (nome técnico de uma fazenda solar), possa compartilhar a energia gerada para um grupo de pessoas, através de cooperativas, consórcios ou condomínios.

De acordo com o TCU, o modelo em que consumidores se associam a empresas com fazendas solares para obter descontos em suas tarifas de energia poderia estar caracterizando uma comercialização ilegal de créditos de energia, o que não seria permitido pelas normas atuais.

“O tribunal argumenta que esses arranjos podem configurar uma apropriação indevida de subsídios, originalmente destinados a incentivar a geração distribuída, e que teriam sido desviados para finalidades não previstas na legislação”, afirma Figueiredo, do escritório do escritório RVF Advogados.

O TCU estima que os subsídios dados a quem assina esses serviços alcançaram R$ 1,8 bilhão no ano passado. Figueredo, porém, considera improvável que a questão acabe inviabilizando o modelo de negócio das fazendas solares, citando o caráter inovador e dinâmico do setor de energia renovável.

“As empresas e cooperativas envolvidas nesse mercado provavelmente buscarão alternativas para adequar suas práticas às exigências regulatórias ou para promover mudanças legislativas que possam legitimar esses modelos de negócio”, afirma.

As duas crises, porém, reforçaram os apelos de especialistas do setor por uma ampla reforma no setor elétrico, como propôs Jerson Kelman, ex-presidente da Light e ex-diretor da Aneel, em entrevista recente ao NeoFeed. Citando as questões dos subsídios de energia renováveis, Barata afirma que o setor elétrico não avança em função de estudos técnicos, mas por pressão de grupos de interesse no Congresso.

“Cada puxadinho que é criado para resolver um problema acaba criando outro maior, é preciso olhar o sistema como um todo”, diz o presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia, citando o surgimento e avanço das fazendas solares.

“Por isso, está na hora de revisarmos o marco regulatório para corrigir os desequilíbrios do sistema, que acabam penalizando o consumidor comum, que paga pelos subsídios na conta de luz”, complementa ele.