A intenção do governo federal de encaminhar ao Congresso Nacional um projeto de lei para reestruturar o setor elétrico foi recebida nesta quarta-feira, 14 de agosto, com um misto de perplexidade e revolta por especialistas e entidades da área.

A reestruturação, baseada em quatro diretrizes, foi anunciada pelo ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira, durante sabatina na Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados na tarde de terça-feira, 13 de agosto.

Os quatro pontos-chave da reforma incluem a ampliação da faixa de consumo elegível para a tarifa social na conta de luz (50 kW para 80 kW), abertura do mercado livre de energia para médios e pequenos consumidores (como residências e comércios menores), alocação “mais justa” dos encargos setoriais e, o ponto mais polêmico, correção da distribuição dos subsídios nas tarifas de energia, com oneração maior para quem consome mais.

Silveira admitiu que a proposta ainda está em gestação pelo governo, mas o objetivo é enviá-la por meio de PL para apreciação do Congresso até setembro e, caso seja aprovada, ser adotada imediatamente.

Para agentes do mercado consultados pelo NeoFeed, as diretrizes anunciadas não atacam o maior gargalo do sistema – os subsídios para as energias solar e eólica, que dobraram em cinco anos, atingindo R$ 40,3 bilhões em 2023.

Estimuladas por esses benefícios, as fontes renováveis cresceram 171% nos últimos cinco anos e já são responsáveis por uma fatia de 13,5% da conta mensal de luz dos brasileiros (em 2018 correspondia a 5,5%), desestruturando a partilha de custos do sistema.

Na prática, boa parte dos subsídios acabam sendo divididos pelos consumidores comuns, que estão alocados no mercado regulado, são atendidos pelas distribuidoras e não têm painel solar no telhado de casa. Já no mercado livre de energia, empresas ou outros grandes consumidores negociam diretamente com geradores e comercializadores.

A União pela Energia, movimento que reúne 70 associações da indústria brasileira, foi a primeira entidade a criticar de forma dura a proposta. Em nota, a entidade diz que a indústria – maior consumidora e que já paga os encargos proporcionais ao seu consumo – arcaria com um custo ainda maior para financiar políticas públicas que deveriam estar alocadas no Orçamento Geral da União.

Lucien Belmonte, porta-voz da União pela Energia e presidente da Abividro (Associação Brasileira das Indústrias de Vidro), diz que as propostas apresentadas devem ser vistas como um discurso político do governo que não se enquadra na economia real.

“Em termos de economia real, vemos os ministros da Fazenda e o da Indústria e Comércio repetindo que precisamos rever os incentivos que estão afastando a competitividade do setor industrial, em contraposição com a fala de Silveira”, afirma Belmonte.

Segundo ele, além de a proposta encarecer a produção da indústria, a ampliação da faixa de consumo elegível para a tarifa social na conta de luz pode não causar o efeito desejado. Isso porque o consumidor de baixíssima renda não paga luz e, portanto, já está atendido. Por outro lado, esse custo da tarifa social é dividido pelos demais consumidores.

“O consumidor residencial já dispende duas vezes mais em produtos que ele compra - cujo preço é impactado pelo custo de energia elétrica de produção - do que na energia que ele gasta”, diz, citando o exemplo do quilo do frango congelado, do qual o custo de energia incide em 30% no preço do produto.

Reforma do setor elétrico

É consenso que o marco regulatório do setor elétrico, em vigor desde 2004, foi fundamental para modernizar e expandir toda a cadeia do sistema – geração, transmissão, distribuição e varejo -, com a criação dos leilões e do mercado livre de energia, obrigatoriedade de contratação de distribuidoras e estabelecimento de comitês de monitoramento, entre outras avanços.

Nos últimos anos, porém, o crescimento de novas fontes de energia renováveis, em especial a solar e a eólica, foi acompanhado de concessão de subsídios por grupos de pressão no Congresso que já deveriam ser extintos.

Em entrevista ao NeoFeed publicada na terça, 13, Jerson Kelman – ex-presidente da Light e ex-diretor da Aneel – defendeu uma reforma do setor elétrico, afirmando que os benefícios para energias renováveis estão inviabilizando o setor. “A saída é dividir os custos entre todos”, disse ele.

O executivo de uma gestora especializada em fundos de investimento voltados para infraestrutura e energia, que não quis se identificar, também defende uma reforma. Mas observa que as propostas do governo, além de vagas, não contemplam alguns problemas estruturais graves do sistema elétrico. Ele cita a falta de investimento em linhas de transmissão, em galerias subterrâneas – em substituição aos postes – e medidas para reduzir a ineficiência do sistema.

“A conta de luz em estados como Rio de Janeiro e Amazonas é 50% mais cara por causa das ligações clandestinas de luz, os ‘gatos’”, diz. “Até a cobrança da conta de luz, que exige visita às residências, é anacrônica, deveríamos ter uma solução digital.”

Para Luiz Eduardo Barata, presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia - coalizão formada por 16 entidades de consumidores ligadas à indústria e ao comércio -, tanto as diretrizes anunciadas pelo governo como a ideia de fazer uma reforma do setor via projeto de lei  são equivocadas.

Sua crítica maior é sobre a abertura do mercado livre para médios e pequenos consumidores. “Somos amplamente favoráveis, mas o governo não diz como vai fazer”, adverte, citando os gargalos referentes à migração em massa de consumidores para o mercado livre, o que prejudicaria as distribuidoras de energia.

Isso porque as distribuidoras compraram energia a longo prazo em leilões. Com a saída do consumidor que elas atendem para o mercado livre, adverte Barata, aquela conta da distribuidora vai ficar sobrecontratada.

“Defendemos uma ampla reforma do setor elétrico, mas ela não pode ser feita às pressas, sem ouvir todos os segmentos, em especial os consumidores”, diz Barata, lembrando a ampla discussão que gerou o marco de 2004. “Se o governo fizer via projeto de lei, quando o pacote chegar ao Congresso, os lobbies vão funcionar e resultados serão imprevisíveis.”