A contenção de gastos do Executivo para tentar manter o equilíbrio fiscal acabou chamando a atenção para um problema que vem se arrastando na gestão dos últimos três presidentes da República – o esvaziamento das 11 agências reguladoras federais, responsáveis pela fiscalização de 60% do PIB do País.

As agências foram duramente atingidas com o recente contingenciamento de recursos do governo federal, por meio de decreto promulgado em 30 de maio. Na média, tiveram seu orçamento reduzido em 25%.

O corte de verbas está causando demissões de terceirizados. Somado à defasagem média de 30% de pessoal - fruto da ausência de concursos para repor vagas, além da incrível marca de três anos sem que o Congresso Nacional sabatine e aprove um diretor sequer, como exige a lei -, as agências estão à beira do colapso.

“O corte de um quarto do orçamento das agências com o contingenciamento é o mesmo que restringir três meses de seu gasto anual, ou seja, significa que a partir de outubro vai faltar dinheiro para elas continuarem a prestar seu serviço”, adverte Vinícius Benevides, presidente da Abar (Associação Brasileira de Agências Reguladoras).

Essas 11 agências cuidam de áreas que vão da aviação civil (Anac) ao saneamento básico (Ana), passando por transportes (ANTT), energia elétrica (Aneel), saúde (ANS), mineração (ANM), portos (Antaq), telecomunicações (Anatel), combustíveis (ANP), saúde suplementar (Anvisa) e até cinema (Ancine).

Dotadas de autonomia financeira e técnica, com seus mais de 11 mil servidores aprovados em concurso, cabe às agências criarem leis, formalizar contratos públicos, traçar normas técnicas de produtos, supervisionar concessões e fiscalizar (aplicando multas) se os setores sob sua responsabilidade estão cumprindo as regras, entre outras atribuições.

Quando elas foram criadas no final dos anos 1990 pelo governo Fernando Henrique Cardoso, inspiradas no modelo americano, o objetivo era evitar a ingerência política na nomeação de pessoal e nas decisões técnicas.

Parte do esvaziamento das agências - que segundo Benevides vem desde 2010 – é decorrente justamente do frequente corte de recursos do Executivo para que os últimos governos federais pudessem atingir superávit primário.

Nesse período, dos R$ 175 bilhões arrecadados pelas agências com outorgas, multas e licenças, apenas entre 20% a 30% do total, dependendo do ano, ficaram com as agências, obrigando-as a demitir funcionários não concursados ou deixar de fazer fiscalizações ou tocar projetos.

Cada agência contabiliza os danos causados por esse abandono do poder público. A ANP, por exemplo, viu o seu orçamento cair 81,2%, em valores corrigidos pela inflação, nos últimos dez anos. Essa redução prejudicou a fiscalização de mercado, o monitoramento da qualidade dos combustíveis e a coleta de informações estratégicas.

Com isso, a agência de óleo e gás vai suspender o Programa de Monitoramento da Qualidade dos Combustíveis (PMQC) durante todo o mês de julho, em função das restrições orçamentárias.

“São 16 mil análises de monitoramento da qualidade de combustível que deixarão de ser feitas, facilitando as fraudes nas bombas de gasolina que em algumas regiões chegam a 40%”, lamenta Benevides.

Razia na Aneel

Na Aneel, responsável por regular o setor elétrico, os problemas se multiplicaram. Em junho, a agência anunciou a demissão de 145 funcionários terceirizados a partir de 1º de julho. A dispensa é equivalente a 15% da força de trabalho do órgão.

Acomodar a baixa de pessoal vai exigir mudança no atendimento da agência. A partir desta terça-feira, 1º de julho, o horário de funcionamento do órgão será reduzido para o período das 8h às 14h. A Aneel também vai interromper o atendimento humano da Ouvidoria e reduzir drasticamente as atividades de fiscalização.

O mesmo vai ocorrer em outras agências. A Anatel admitiu que a restrição orçamentária vai atingir ações de bloqueio de bets ilegais, combate à pirataria em TV por assinatura e iniciativas contra a desinformação junto ao Tribunal Superior Eleitoral.

A ANM, agência de mineração, estuda fórmula para não paralisar a fiscalização de barragens, rejeitos e lavra ilegal. Já a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) deve suspender agendamento dos exames teóricos exigidos para obtenção de licenças e habilitações de profissionais, como pilotos e mecânicos.

Outro drama das agências é administrar a briga entre Executivo e Legislativo para preenchimento de cargos de alto nível – os diretores são escolhidos pelo Executivo, mas precisam passar por sabatina no Senado.

Ao todo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva enviou ao Senado, no fim do ano passado, a indicação de 14 diretores para oito agências reguladoras. Mas as divergências políticas entre governo e Congresso estão deixando acéfalas muitas agências.

Benevides, da Abar, diz que o Executivo tem parte da culpa, “pois precisa conversar antes, o Senado não aceita nome imposto”.

A Ana, agência responsável por saneamento, tem três superintendentes ocupando interinamente a função de diretor. A ANP trocou o presidente por um diretor substituto, sem passar pela sabatina do Senado.

As restrições orçamentárias somadas à falta de pessoal levaram a Aneel a desfalcar outros setores do governo. Além de contar dois diretores interinos, o diretor-geral Sandoval Feitosa enviou ofício ao MME (Ministério de Minas e Energia) solicitando a devolução dos servidores cedidos.

A lista inclui o secretário Nacional de Energia Elétrica, Gentil Nogueira, que atua como ministro interino quando Alexandre Silveira está em viagem, o atual presidente da EPE (Empresa de Pesquisa Energética), Thiago Prado, e de mais dois diretores da estatal de planejamento. A medida deixaria três das cinco cadeiras da diretoria da EPE vagas.

Fernando Gallacci, sócio de infraestrutura do escritório SouzaOkawa Advogados, lembra que não é recente as atuais discussões sobre contingenciamento do orçamento das agências reguladoras e os desafios de indicação/aprovação do seu corpo diretor.

“Governos anteriores vez ou outra buscaram influenciar na agenda regulatória lançando mão destes expedientes, exatamente porque estas medidas acabam por desestruturar as balizas de independência regulatória”, afirma.

Benevides, presidente da Abar, lembra que as agências sempre estão na mira da classe política por ter atuação que mistura atribuições dos três poderes. “O modelo das agências reguladoras é o que traz segurança jurídica para contratos de 30 anos, pois não são influenciados pelo governo de plantão”, adverte.

Por isso, ele vê riscos que a atual crise desestimule investidores estrangeiros em atuar no setor de infraestrutura. “Quando uma das autonomias das agências, seja administrativa, financeira ou regulatória, vai mal, deteriora o resto”, acrescenta.

A esperança, segundo ele, são dois projetos lei em tramitação no Senado que asseguram autonomia financeira para as agências reguladoras: “A legislação precisa deixar claro que a receita vinculada, ou seja, os recursos arrecadados pelas agências reguladoras junto aos consumidores, são das agências e não podem ser usados para outros fins, como contingenciamento.”