Na manhã desta quinta-feira, 20 de outubro, Liz Truss renunciou ao posto de primeira-ministra do Reino Unido, colocando um ponto final em um período de apenas 45 dias no cargo e cumprindo, na prática, o mandato mais curto de um premiê no país.

O anúncio que, por si só, já seria problemático, é apenas a ponta de um contexto mais amplo. Esse cenário se traduz num caldeirão que vem sendo aquecido há mais tempo e cuja fervura foi acelerada pela curta e turbulenta gestão de Truss. E que suscita comparações que, até pouco tempo, poderiam soar como um disparate.

“Se você olhar os números do Reino Unido e tirar o nome, vai dizer que é um mercado emergente”, afirma Roberto Attuch, CEO da OHMresearch. “Eles estão com déficit fiscal, déficit em conta corrente e outros traços de países emergentes. É claro que é apenas um paralelo, dado que eles representam 1,5% do PIB global, mas é o que parece efetivamente.”

Além do chamado “déficit gêmeo”, outros indicadores resultado da combinação de problemas locais e do contexto global ilustram o cenário desafiador na economia britânica. Em setembro, muito por conta da pressão na energia causada pela Guerra na Ucrânia, a inflação acumulada em doze meses no Reino Unido foi de 10,1%, o maior patamar desde 1982.

Economista-chefe do banco Modal, Felipe Sichel ressalta que, além do chamado “déficit gêmeo”, a volatilidade dos ativos financeiros do Reino Unido definitivamente corrobora essa hipótese. Ele entende, porém, que as analogias se esgotam nessas questões. Sem deixar, no entanto, de fazer algumas ressalvas.

“O Reino Unido passa por uma sucessão de choques tal qual a economia global, mas que é ampliada pelo fato deles estarem se adaptando a um ambiente pós-Brexit”, diz. O déficit nas contas externas é um dos reflexos desses ajustes que se apresentaram no período.

Após o referendo que marcou a sua saída da União Europeia, em 2016, o Reino Unido teve que renegociar uma série de acordos comerciais em um movimento que, em muitos casos, impôs novas tarifas e não se mostrou nada favorável a uma economia bastante depende de exportações.

“É uma economia que está sob questionamentos severos e que precisa dar respostas a esses questionamentos”, observa Sichel. “E o mandato de Liz Truss, curto como foi, coloca ainda mais dificuldade para quem a substituir.”

De fato, os sinais emitidos durante a passagem de Truss só turbinaram a desconfiança em relação ao momento e ao futuro do Reino Unido. A gestão da premiê foi marcada pelo anúncio de medidas controversas e recheada de polêmicas.

Em uma dessas pontas, ela congelou as tarifas de energia de empresas e consumidores, sem deixar claro como pagaria a conta que subsidiaria essa medida. Dias depois, divulgou um pacote que combinava corte de impostos e aumento dos gastos, com um custo estimado de 45 bilhões de libras aos cofres públicos.

“O pacote criava um buraco fiscal que já seria preocupante em qualquer momento e ainda mais em um cenário como o atual”, diz Rachel de Sá, chefe de economia da Rico. “Isso fez com que o mercado virasse de ponta cabeça, a libra despencasse e obrigou o Banco Central da Inglaterra a intervir para tentar conter a volatilidade.”

Dali em diante, a pressão sobre Truss só cresceu e ganhou ainda mais força na sexta-feira, 14 de outubro, com a queda de Kwasi Kwarteng, ministro das Finanças. Já na segunda-feira, dia 17, seu substituto, Jeremy Hunt, anunciou que iria reverter boa parte do plano anunciado pela primeira-ministra.

Entrelaçado com as turbulências na economia, um outro fator, esse, exclusivamente local, tem ajudado a colocar ainda mais lenha na fogueira da crise britânica. E também foi acentuado durante o período de um mês e meio em que Truss esteve à frente dos rumos do Reino Unido.

“Uma parte da crise é resultado de uma crise política. O país e Partido Conservador estão completamente perdidos desde o Brexit”, diz Attuch, da OHMresearch. “Nessa combinação, entre os países desenvolvidos, o Reino Unido é a única economia que não se recuperou da pandemia.”

A renúncia da premiê alimentou ainda mais as disputas internas no Partido Conservador, que já vinham intensas mesmo antes da saída de Boris Johnson, antecessor de Truss, em meio a acusações de corrupção e assédio.

“As crises estão se encontrando no Reino Unido. Há uma crise global, econômica, que por lá, acabou agregada a uma crise política”, diz Rachel, da Rico. “E essa renúncia da primeira-ministra só reflete uma instabilidade política e institucional muito grande no país, um outro traço de mercados emergentes.”

A economista ressalta que a saída de Truss traz um alívio apenas momentâneo nesse cenário.
“Não há um nome claro e forte para substitui-la. Fala-se até no próprio Boris, mas ele saiu bastante enfraquecido do cargo”, observa.

Para complicar ainda mais esse panorama, há uma petição no parlamento britânico para a convocação de eleições gerais, que só aconteceriam em 2024. Com sua credibilidade abalada, o Partido Conservador terá o desafio adicional de barrar essa proposta, já que todos os cenários apontam para um avanço do Partido Trabalhista em um eventual pleito.

Enquanto isso, Truss seguirá interinamente como premiê até que se decida pelo seu substituto. Um dos favoritos para assumir o posto é Rishi Sunak, que perdeu justamente para a primeira-ministra na escolha realizada em setembro.

“A situação é realmente muito delicada e a pergunta é se o novo governo vai conseguir criar um mínimo de instabilidade e governabilidade para sobreviver até as eleições de 2024”, diz Sichel, do banco Modal. “Enquanto isso, o problema fiscal não é resolvido, há problemas de inflação e crescimento, de desvalorização da moeda. Enfim, há muitos ajustes a serem feitos."