Esporte é, antes de tudo, um direito social. Isso porque, conforme definição do próprio dicionário, é um conjunto das atividades físicas ou de jogos que exigem habilidade, obedecem regras específicas, e visam ao lazer e o condicionamento do corpo e da saúde. Em outras palavras, é uma prática que proporciona bem-estar e qualidade de vida e, além de ser um meio importante de socialização, contribui para o desenvolvimento humano.

Mas fora essa definição formal, quais parâmetros você usaria para delimitar o que é esporte? Até para nós advogados não é uma tarefa fácil, já que em momento algum a Constituição Federal estebelece essa normativa, e versa sobre o tema de modo expresso somente no artigo 217, ao definir que é dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais.

Por sua vez, a Lei Pelé (nº 9.615/1998), que institui as normas gerais sobre o desporto no Brasil, também não apresenta o que deve ser considerado esporte. No entando, conforme seu artigo 26, “atletas e entidades de prática desportiva são livres para organizar a atividade profissional, qualquer que seja sua modalidade”.

Essa discussão, pouco ou nada inédita, voltou à tona após a recém-empossada ministra dos esportes, Ana Moser, dizer que vê os jogos eletrônicos como parte de uma "indústria do entretenimento" e ter declarado que a pasta não prevê investimentos na modalidade.

Fora a polêmica em torno dessa postura coservadora, que vai de encontro com a maior parte das propostas de inovação na atual sociedade digital, é uma atitude que praticamente anula a chance de movimentar e faturar com uma indústria que cresce e enriquece cada dia mais.

Ao não enquadrar os eSports dentro dos investimentos governamentais oriundos do Ministério do Esporte, nem todas as modalidades teriam o poder de subsistir em alto nível que possui hoje o cenário de jogos eletrônicos. Caso a legislação caminhe nesse sentido de exclusão, as organizações desportivas já estabelecidas poderão sofrer impactos que ressoarão no cenário competitivo dos jogos em si e, principalmente, nos atletas.

Vale lembrar que ao levar em conta o enquadramento do eSports como entretenimento, as prerrogativas legais de um artista e de um atleta são substancialmente distintas e resultam em consequências significativas para os envolvidos.

O não enquadramento dos eSports como esportes também exclui de plano eventuais benefícios aos ciberatletas, como as que possam ser levantadas no âmbito de proteção da Lei Pelé.

Não viria a ser aplicável aos atletas de eSports, por exemplo, a obrigação de que os contratos firmados com as equipes possuam cláusula indenizatória por quebra de contrato de ambas as partes, inclusive em transferências de equipes, cujo valor pode ser livremente pactuado pelas partes dentro dos limites legais.

Além do exposto, é importante destacar que a Lei Pelé tem um forte viés de proteção aos atletas menores de idade. Por exemplo, a Lei Pelé dispõe que os atletas em formação, maiores de 14 anos, poderão receber auxílio financeiro da entidade de prática desportiva formadora, sob a forma de bolsa de aprendizagem livremente pactuada mediante contrato formal, sem que seja gerado vínculo empregatício entre as partes.

Em um cenário como o dos eSports, no qual uma parcela relevante dos competidores de alta performance corresponde a menores de idade, tal proteção seria extremamente benéfica. Ainda que a relação entre os atletas e suas equipes não estejam regulados pela Lei Pelé, é plenamente possível que contratos sejam firmados nesse sentido, baseados exclusivamente na autonomia privada.

Essa relação, caso atenda aos requisitos que caracterizam o vínculo trabalhista, poderia ainda ser regulada pela legislação trabalhista comum. Ou seja, para que haja um crescimento sustentável, as empresas envolvidas devem se atentar às legislações aplicáveis no âmbito de suas atividades.

Não caberia ao Ministério do Esporte reconhecer a existência de determinadas modalidades, mas sim fomentá-las. Nesse sentido, nos parece mais temerário excluir expressamente uma prática do que não a referendar

O poder público tem, claro, prerrogativas para decidir onde e como investir seus recursos, ressalvados os princípios da administração pública. Porém, não caberia ao Ministério do Esporte reconhecer a existência de determinadas modalidades, mas sim fomentá-las. Nesse sentido, nos parece mais temerário excluir expressamente uma prática do que não a referendar.

Por outro lado, a iniciativa privada se movimenta para patrocinar equipes, competições e atletas, reivindicando suas próprias noções do que é desporto. Já foram constatados, inclusive, patrocínios a equipes de eSports maiores que os de equipes de futebol da primeira divisão do Campeonato Brasileiro.

É um dos maiores mercados do mundo e consiste num movimento inevitável de novas relações e modalidades esportivas que são modificadas e modificam a sociedade da transformação digital.

Patricia Peck é CEO e sócia do Peck Advogados, Conselheira Titular do Conselho Nacional de Proteção de Dados (CNPD) e Professora da ESPM.

Artigo escrito em conjunto com:

Antônio Oliveira, sócio da área de Contratos, Inovação e Legal Design do Peck Advogados.

Gabriel Arantes, advogado especialista em Direito Digital e games.