Você acorda, pega seu smartphone, olha as últimas notícias, vê as fofocas no Facebook, faz o check-in do seu voo, reserva no Airbnb aquela casa de praia para sua viagem no próximo feriado, checa e faz a transferência eletrônica em seu banco, busca um restaurante para seu compromisso de almoço, faz a barba ouvindo músicas no Spotify e solicita o Uber para pegá-lo em sua casa.
O motorista (daqui a pouco serão veículos autônomos) vai seguir seu caminho através do Waze. Você também tira foto daquela verruga que está te incomodando e a envia para seu dermatologista. Aponta a câmera para você e ele avalia com seu selfie o seu nível de estresse com base em uma varredura facial.
Uau! Tudo isso usando seu computador de bolso, criado em 2007 e recheado de apps baseados em inteligência artificial (IA). Sim, lançado há apenas treze anos! E pensar que há uns meros seis ou sete anos era impossível pensarmos nisso tudo.
O que parecia impossível poucos anos atrás é realidade hoje. E o que parece impossível hoje será realidade em cinco ou menos anos à frente. Tudo está se movendo mais e mais rápido. Tiveram a prova disso com as mudanças impostas compulsoriamente pela pandemia, onde o deslocamento do trabalho dos escritórios para as casas dos funcionários mostrou quão despreparadas estavam muitas empresas.
Esse cenário mostra que está claro e cada vez mais premente a necessidade de as empresas começarem a transformação dos seus negócios, pressionadas pela velocidade das mudanças provocadas pela revolução digital.
Muitos executivos com os quais converso demonstram claramente que sabem que, ao longo dos anos, suas empresas acabaram se acomodando, fazendo o que sempre fizeram, com apenas algumas melhorias incrementais.
Sabem também que se mantiverem aferrados a esse ritmo de mudanças graduais, suas organizações se tornarão irrelevantes com o passar do tempo. Entendem que é a própria sobrevivência do negócio que está em jogo e que a revolução digital permite mudanças revolucionárias e não apenas evolucionárias. Apostar continuamente no futuro passa a ser a regra do jogo.
Não é por menos que artigos como “Why Half of the S&P 500 Companies Will Be Replaced in the Next Decade” mostram que mesmo empresas sólidas como eram Blockbuster, Nokia, Kodak, HP, Blackberry, Polaroid, Toys’R’Us, Thomas Cook e outras perdem sua relevância ou desaparecem.
O estudo mostra que, em 1965, o tempo médio de permanência (ou vida) das empresas na lista S&P 500 era de 33 anos. Em 1990, já havia caído para 20 anos. E agora, prevê-se encolher para 14 anos até 2026. E pior: cerca de 50% da atual lista da S&P 500 será substituída nos próximos 10 anos. Outro estudo, da CBInsights, abaixo, mostra que, nos últimos 15 anos, 52% das empresas da lista S&P 500 já desapareceram.
Esses executivos não estão sozinhos. Uma pesquisa global da MIT Sloan Management Review apontou que 90% dos executivos entrevistados disseram que suas indústrias sofrerão rupturas significativas em poucos anos, mas apenas 44% se disseram preparados para enfrentar tal disrupção.
Outro estudo corroborou esses resultados. O estudo global “Digital Business Research Index”, realizado pela Dell Technologies, com mais de 4.000 executivos, mostrou que quase metade (45%) das companhias pesquisadas, temem que seus negócios se tornem obsoletos dentro dos próximos três a cinco anos. E 78% das deles enxergam as startups digitais como ameaça para sua organização.
Mais da metade (52%) dos líderes de negócios vivenciaram uma interrupção significativa em seus setores nos últimos três anos, como resultado do advento das tecnologias digitais e da Internet das Coisas, e 48% das empresas globais não sabem como será seu setor daqui a três anos. E apenas uma pequena minoria está perto de concluir sua transformação
Está claro que a evolução exponencial da tecnologia já está afetando de forma dramática o cenário competitivo. Em termos econômicos, quando as curvas de custo dos fatores primários de produção de uma indústria entram em declínio, as mudanças passam a ser inevitáveis.
Hoje, indiscutivelmente, três fatores essenciais de produção se tornaram muito mais baratos e continuarão a baratear: informação, conectividade e poder computacional. Toda e qualquer indústria é afetada por esses fatores. Seja nas indústrias como a automotiva, com os veículos autônomos reinventando a própria indústria, seja nos setores de serviços como hoteleiro, financeiro ou seguros.
As empresas da era pré-internet, típicas do modelo da sociedade industrial, construíram seus negócios baseados no conceito da escassez de informações, recursos de produção e distribuição, e alcance de mercado. As empresas pós-internet foram construídas sob outro paradigma, em que os três fatores essenciais acima são abundantes e com isso geraram efeitos perturbadores no status quo do mercado.
Um Airbnb não precisa de prédios, escassos e caros de construir, para hospedar pessoas. Foi um negócio construído por outra ótica, em que a abundância dos fatores como capacidade computacional e informações, permitiu criar um modelo de negócios em plataforma, agregando quem quer alugar um espaço com quem quer se hospedar.
A transformação digital provoca mudanças em todos os setores. Em julho de 2016, uma empresa tradicional, da chamada economia pré-internet, a Unilever, comprou por US$ 1 bilhão uma startup chamada Dollar Shave Club, fundada em 2011.
Essa startup que tinha menos de quatro anos de vida conquistara 5% de participação do mercado americano de lâminas de barbear. Com um modelo digital de venda direta por assinatura, no qual o cliente paga um pequeno valor mensal para receber um pacote de produtos, ela conseguiu alcançar 3,2 milhões de assinantes e um faturamento de mais de 150 milhões de dólares. Sem fazer nenhum investimento em propagandas nas mídias tradicionais como televisão.
E de quem ela roubou essa fatia de mercado? Da gigantesca Procter & Gamble, dona da marca Gillete e com mais de 180 anos de vida. A P&G, mesmo com seus investimentos bilionários em P&D, não conseguiu ter velocidade suficiente para competir no mundo digital, onde as regras do jogo são diferentes. A estratégia da Unilever para fazer a aquisição pode ser analisada em “Seven Reasons why Unilever bought Dollar Shave Club”.
As empresas tradicionais ainda olham o mundo digital como apoio ao seu negócio e não como um fator essencial de produção
Por que essas coisas acontecem? Porque as empresas tradicionais ainda olham o mundo digital como apoio ao seu negócio e não como um fator essencial de produção. Clayton Christensen, autor de “Innovator´s Dilemma” disse uma frase emblemática, que sintetiza muito bem o contexto: “O pior lugar para desenvolver um novo modelo de negócios é dentro do atual modelo de negócios.”
O cenário é desafiador e se preparar para um futuro digital não é fácil. Saber que a disrupção está batendo à porta é uma coisa. A dificuldade está em como enfrentá-la? Com que velocidade devo transformar meu negócio? Qual será a amplitude dessa disrupção e como criar valor tangível com a digitalização da organização?
Algumas empresas estão conseguindo fazer as mudanças. Um estudo do MIT Sloan, “Aligning the Organization for Its Digital Future”, mostra alguns caminhos. O estudo mostrou que as transformações que estão dando certo se baseiam em alguns pilares:
a) Criar uma cultura digital é um esforço intencional e não obra do acaso. Uma cultura digital não se cria apenas com slogans de “somos digitais”, e ao mesmo tempo continuar a manter os processos e as estruturas organizacionais da sociedade analógica. É um esforço de mudança de conceitos que precisa do comprometimento do CEO e dos demais executivos. Deixar a transformação digital por conta de um CIO, sozinho, em sua área de TI, como vejo acontecer em algumas empresas, simplesmente não vai dar certo. Ele não conseguirá mudar a cultura corporativa.
b) Todos os executivos precisam navegar bem no mundo digital. Impossível um CEO se comprometer com algo que não tenha um razoável domínio. Isso não significa em absoluto que ele vai escrever código de programas, mas que seja usuário entusiasmado de tecnologias. Os executivos e as lideranças no mundo digital devem ter skill de tecnologia (novamente, não precisam ser nerds!), mas fundamentalmente ter visão transformadora, ser visionário (forward thinker) e espírito de colaboração e liderança. Apenas o fato de um executivo ter excedido suas metas de vendas nos últimos quartis não é mais a qualificação prioritária para assumir uma liderança no mundo digital.
c) É absolutamente essencial investir em talentos digitais. O ambiente de trabalho hoje é totalmente diferente daquele do século 20. Os custos de experimentação e eventuais fracassos, devido aos fatores citados no início do post, são bem mais baixos do que antigamente. Um protótipo pode ser rapidamente feito em uma impressora 3D ou um novo e complexo código de sistemas pode ser feito em poucos dias. Uma mudança fundamental no algoritmo do AdWords do Google foi efetuado por cinco engenheiros de software em um fim de semana.
Na prática, o que isso significa? Na nova economia, ser rápido implica que projetos muito grandes, com timelines e budgets fixos, como as antigas implementações de ERP, não tem mais lugar em um cenário de negócios altamente volátil, incerto, complexo a ambíguo. As empresas têm que tomar decisões e fazer as coisas muito mais rápido que estão acostumadas.
Hoje, em muitas empresas, a estrutura de desenvolvimento de produtos, seja software ou físico (que cada vez mais embutem software) é baseada em fases e etapas bem delimitadas, regidas por revisões executivas que sobem lentamente pela estrutura hierárquica da empresa.
Essa abordagem tem como objetivo conservar recursos e canalizar a informação das diversas áreas da empresa para um pequeno grupo de tomadores de decisão, encastelados no topo da hierarquia, que detém as informações. Isso fazia sentido no paradigma da escassez, quando as informações não circulavam e era importante minimizar ao máximo os riscos.
É uma abordagem que desacelera o processo e inibe a inovação. Totalmente contrário ao mindset digital, onde inovação tem que ser rapidamente apresentada, discutida e se aprovada, implementada. A organização e os processos tradicionais agem contra a transformação digital pois foram concebidos sob outro paradigma.
Observamos esse fenômeno na prática, quando analisamos os grandes bancos na sua tentativa de acompanhar as inovações das fintechs (startups do setor financeiro), importando produtos, serviços e a forma de comunicação dessas empresas para dentro de suas operações. Mas com as amarras da organização e estrutura bancária tradicional, as grandes instituições ainda tropeçam na velocidade das mudanças.
O CEO do banco americano J.P.Morgan foi direto na ferida quando disse: "O Vale do Silício está chegando. Há centenas de startups cheias de cérebros e de dinheiro trabalhando em várias alternativas aos bancos tradicionais."
Sim, o desafio de hoje é que os concorrentes vêm de qualquer lugar. A Starbucks é uma das líderes, nos EUA, em mobile payment! Este instigante artigo, escrito em 2016, “The banks of Google, Facebook and Amazon”, já apontava que os bancos que continuarem a pensar serem os eternos “reis do pedaço” podem se dar mal. Vale também a pena ler “The Future Of Banking: Fintech Or Techfin?”, onde fica claro que a entrada das big techs, gigantes de tecnologia como Amazon, Facebook e Google, em finanças deverá mudar as regras do jogo.
Estamos na segunda década do século 21 e já está bem claro que a transformação digital não é mais uma questão de oportunidade ou escolha, mas um imperativo. Quanto mais tempo a empresa demorar para fazer sua transformação, mais irrelevante e marginalizada ficará.
Embora ainda vejamos executivos acharem que, como seus produtos existem basicamente no mundo físico, não serão afetados pela transformação digital e com isso se sentem mais relaxados. Infelizmente, é uma atitude errada.
Qualquer empresa hoje pode e deve usar as tecnologias digitais não apenas para dar mais inteligência aos seus produtos, mas também para criar novas ofertas de serviços e engajamento com seus clientes. O mundo mudou. O cliente tem hoje infinidade de opções e abundância de informações.
O futuro pertence a empresas que se moverem rápido e inovarem continuamente. A conceituada publicação Fortune reconheceu isso em um estudo, junto com o Boston Consulting Group, e publicou a lista das Future 50, as 50 empresas que provavelmente já são ou serão as líderes do mercado nos próximos anos.
Nessa lista, vocês verão nomes como Amazon, Tesla, Facebook, Netflix, Alphabet, Workday, Salesforce, Yelp, Lending Club...algumas poucas empresas de 20 anos e a maioria menos de dez anos! O artigo “Older Companies Are Generally Less Vital — Chart of the Week #43 / 2018” é um alerta para os executivos das empresas.
Uma frase de Jeff Bezos é emblemática desse novo mundo: “No mundo antigo, você dedicava 30% do seu tempo para construir um grande serviço e 70% do seu tempo para gritar sobre isso. No novo mundo, isso inverte”.
A questão não é se os executivos das empresas vão aceitar ou não as mudanças provocadas pela transformação digital. Não são eles que impedirão elas de acontecerem. O mundo já mudou. A IA, o motor destas transformações, já é realidade.
A IA não é buzzword ou brincadeira tecnológica. É uma tecnologia transformadora que está no cerne destas transformações dos negócios. Subestimar sua importância pode ser o primeiro passo para a futura irrelevância da sua empresa.
*Cezar Taurion é VP de Inovação da CiaTécnica Consulting, e Partner/Head de Digital Transformation da Kick Corporate Ventures. Membro do conselho de inovação de diversas empresas e mentor e investidor em startups de IA. É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral, PUC-RJ e PUC-RS.