Um trabalho artístico pode ser descrito de várias maneiras. Há o caminho técnico, com suas dimensões e materiais. Mas, há a experiência pessoal, a percepção sensorial de quem o analisa. "Essa é uma obra do Carlito. Quadrada, o tamanho dela é 30 por 30. Parece feita de um material como cera. Alguma coisa, eu vejo logo, foi feita por trás e que veio para frente. Parecem uns dedinhos — que é o nome da obra —, mas parece mais ainda algumas raízes que começaram a crescer e, depois, pararam.”

Assim o artista Nuno Ramos, amigo de Carlito Carvalhosa, apresenta uma peça da série Dedinhos no audiocatálogo Uma coisa por outra, lançado pela produtora Supersônica, em parceria com o Instituto Tomie Ohtake, onde acontece a exposição A Metade do Dobro, com cerca de 150 obras de Carvalhosa, realizadas entre 1984 e 2021.

Essa não é a única mostra de Carvalhosa em São Paulo. No Sesc Pompeia, A Natureza das Coisas exibe outra faceta do artista, com obras monumentais como Sala de Espera, Já Estava Assim Quando Eu Cheguei, e A Soma dos Dias. Com esta última, Carvalhosa tornou-se, em 2011, o primeiro artista brasileiro a ocupar o átrio do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA).

Essas iniciativas reacendem o legado de Carlito Carvalhosa, morto em 2021, aos 59 anos, vítima de um câncer no intestino.

A galeria Nara Roesler, que representa seu espólio, planeja lançar em dezembro um livro sobre sua obra, enquanto a cineasta Karen Harley já trabalha em um documentário sobre sua vida e trabalho. É um momento de celebrar o artista e também pensar como ele se contextualiza de uma forma mais historiográfica”, diz, em entrevista ao NeoFeed, Paulo Miyada, curador do Instituto Tomie Ohtake e da mostra ao lado de Ana Roman, Lúcia Stumpf e Luis Pérez-Oramas

Luiz Carlos Cintra Gordinho Carvalhosa nasceu na capital paulista, em 1961. Formado em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade de São Paulo, interessou-se pelas artes visuais ainda durante a graduação. E fez parte de um momento efervescente da arte brasileira, o Geração 80.

Naquela década, jovens em torno dos 20 anos foram reconhecidos pela retomada da pintura no Brasil. Entre eles, os artistas do coletivo Casa 7, composto por Carvalhosa, Rodrigo Andrade, Fábio Miguez, Nuno Ramos e Paulo Monteiro — conhecidos pelo uso de materiais de baixo custo, como tinta industrial e papel kraft.

No início da carreira, o grupo participou da Bienal Internacional de São Paulo, em 1985, que acabou sendo a última exibição conjunta dos artistas.

Esse momento também representou uma virada para Carvalhosa, que passou a explorar o uso da cera, pura ou com pigmentos. Nos anos 2000, além dos materiais maleáveis, o artista se voltou para o alumínio.

Na superfície rígida, ele recriou a tensão de Dedinhos, descrito por Nuno, moldando protuberâncias que parecem prestes a romper. Em outras peças, usava alumínio polido, transformando-o em espelho, mas aplicava manchas de tinta, ocultando parcialmente o reflexo.

Entre pinturas & filhas

Nesse período, o ateliê de Carvalhosa também era um espaço de brincadeiras. Suas filhas, Cecília e Maria, ainda crianças, passavam horas ao lado do pai, ajudando-o a cobrir aquelas superfícies metálicas com tinta.

“Era muito legal pintar os alumínios. Porque você estava tentando pintar em uma superfície completamente estranha para a tinta e que na escola nunca me deixaram fazer esse tipo de coisa”, recorda Cecília em um depoimento para a irmã.

Aos 22 anos, Maria é uma das responsáveis pela criação do audiocatálogo, Uma coisa por outra, junto com Anna Costa e Silva e Daniela Thomaz. Para a jovem, mais do que um projeto em homenagem ao pai, foi, para ela um mergulho na obra de Carvalhosa sob uma nova perspectiva.

“A audiodescrição poética permite uma relação mais sensível com a obra. Acho importante tratar a acessibilidade também em termos estéticos”, diz Maria Carvalhosa (Foto: Jorge Bispo)

"Alguma coisa, eu vejo logo, foi feita por trás e que veio para frente. Parecem uns dedinhos", descreve, no audiocatálogo, o artista Nuno Ramos sobre a obra de Carvalhosa, de 1992, sem título, da série "Dedinhos" (Foto: Flavio Freire)

A exposição no Sesc Pompeia traz as obras monumentais do artista (Foto: Bruna Damasceno)

Sem título, 2011, em cerâmica faiança (Foto: Flavio Freire)

"Imaterialidade" (Foto: Alexandre Nunis)

Sem título, 1998-1999, gesso (Foto: Divulgação/Instituto Tomie Ohtake)

"Sala de Espera" (Foto: Everton Ballardin)

Após um erro médico ao tentar curar uma hidrocefalia, um acúmulo anormal de líquido nas cavidades do cérebro, que aumentava a pressão sobre o nervo óptico, aos 13 anos, Maria recebeu o diagnóstico de que não recuperaria mais a visão.

Sua condição não a impediu de estudar Letras e de fundar, em 2023, a editora Supersônica, especializada em audiolivros, com Beatriz Bracher, Daniela Thomas e Mariana Beltrão.

A Supersônica produz audiolivros cuidadosos, narrados por grandes nomes das artes cênicas, como Isabel Teixeira, Guilherme Weber e Mariana Lima.

O convite para produzir o audiocatálogo da mostra A Metade do Dobro veio do Tomie Ohtake. Em vez de apenas ler o conteúdo do catálogo, elas propuseram uma imersão poética na obra de Carlito por meio da escuta.

“É o entrelaçamento entre o que o entrevistado vê e o que ele percebe ao descrever a obra”, define Maria ao NeoFeed. “As falas são soltas e profundas, sem qualquer pretensão hermética. São áudios densos e, ao mesmo tempo, muito verdadeiros e acessíveis ao público."

O projeto envolveu mais de cinquenta horas de entrevistas com 23 convidados, entre eles os artistas Arnaldo Antunes, Iole de Freitas, Nuno Ramos, e os curadores Ivo Mesquita, Luísa Duarte e Lorenzo Mammì. “Foi muito especial, para mim, ficar mergulhada na obra do meu pai e ouvir essas pessoas que eram com quem ele conversava”, comenta Maria.

Audiodescrição poética

Em cada capítulo, segue-se a mesma estrutura: uma descrição técnica da obra por Daniela Thomas, duas audiodescrições poéticas feitas por entrevistados diferentes e depoimentos sobre carreira e obra de Carlito.

“A audiodescrição poética permite uma relação mais sensível com a obra. Acho importante tratar a acessibilidade também em termos estéticos”, defende Maria. “Assim como as pessoas que enxergam têm direito a ambas as abordagens, nós também precisamos do lado técnico e do lado poético, para realmente nos conectarmos com o trabalho.”

Cada convidado oferece ao ouvinte uma perspectiva pessoal, enriquecida pela convivência com o artista.

O pintor Rodrigo Andrade, por exemplo, que dividiu o ateliê com Carlito, compartilha informações sobre as escolhas dos materiais para as produções das obras em suas descrições.

Esses detalhes proporcionaram a Maria uma experiência mais intensa nas exposições do pai.

“Todos os entrevistados me emprestaram um pouco do olhar deles. Isso me interessa muito mais do que tentar alcançar um ponto neutro na discussão da obra”, afirma.

Para Maria, o principal ingrediente deste projeto é o amor. Como ela diz: “Este sentimento sustenta todo o movimento que está acontecendo. Queremos que a obra de Carlito chegue a todos os lugares”.