Uma das cenas de “Super Pumped: The Battle for Uber”, do serviço de streaming Paramount+, dá uma ideia de agressividade e da cultura corporativa tóxica instaurada por Travis Kalanick no comando do Uber.
O momento reproduzido é o da chegada da ordem judicial para a startup suspender as atividades, sob ameaça de penalidades e até de prisão, ocorrido em 2010. Assim que o então CEO da empresa recebe o documento, das autoridades de San Francisco, por operar como empresa de táxi sem a devida permissão, ele sai imediatamente de sua sala, gritando.
“Esta não é a nossa sentença de morte. E sim nossa maldita certidão de nascimento”, afirma Kalanick, interpretado pelo ator Joseph Gordon-Levitt (de “A Origem”), no primeiro episódio da série que chega ao Brasil em 12 de maio.
“Isso significa que estamos vivos neste mundo e estamos crescendo para c******. É um sinal de que a indústria de táxi, a agência de transporte e o status quo estão c****** de medo. Esta é a validação de nossa posição como disruptores”, diz, aos berros, o CEO aos seus funcionários.
Embora Kalanick tenha sido um visionário, a ponto de revolucionar o segmento, fazendo do Uber um sinônimo de app para pedir corridas, ele teria dado indícios, desde o início, de seu comportamento nocivo.
O próprio adjetivo “disruptor” é usado por ele, com muito orgulho, inúmeras vezes na série, como quem tem prazer em destruir algo legalizado, pouco se importando para com vidas afetadas e prejudicadas pelo caminho.
“Uber é o futuro. Nós somos reis e deuses. E algumas vezes precisamos jogar sujo”, diz o empreendedor, que passou por cima de muitas legislações para emplacar o seu negócio, transformando qualquer carro em um “táxi”.
O perfil de Kalanick é traçado aqui de acordo com o livro “Super Pumped: The Battle for Uber” (“Super Empolgado: A Batalha Pelo Uber”, na tradução literal). A obra foi publicada em 2019 por Mike Isaac, repórter de tecnologia do jornal “The New York Times.
O material é resultado de entrevistas com centenas de funcionários e ex-funcionários da Uber. Seus depoimentos ajudam a compreender como Kalanick perdeu o controle do negócio bilionário – sendo afastado da própria empresa em 2017, pelos principais acionistas.
O livro foi a base para o trabalho realizado na série pela dupla Brian Koppelman e David Levien, os criadores de “Billions”. Ao lado de Beth Schacter, eles atuam aqui como roteiristas, produtores executivos e “showrunners” – como são chamados os profissionais que têm a palavra final nas séries dos EUA, aos quais até os diretores são subordinados.
O foco cai na conturbada trajetória de Kalanick, relembrando no início da trama os primeiros anos da Uber. Para a sua expansão, o CEO precisa desesperadamente de Bill Gurley (vivido por Kyle Chandler), o investidor de tecnologia que é sócio da empresa de capital de risco Benchmark. (veja o trailer)
“Se alguém chamar nosso serviço duas vezes, nós o pegamos para a vida toda”, diz o convincente Kalanick, a Gurley, logo na primeira reunião. “E depois de colocá-los em nosso carro, podemos cobrar o que quisermos na próxima vez”, completa o empreendedor.
São vários os episódios resgatados na história para explicar os altos e os baixos da Uber. Vemos Kalanick nas ruas para conquistar o apoio da população, ao mesmo tempo em que os engenheiros da Uber trabalham em novas tecnologias para driblar os problemas com a lei.
Há ainda detalhes da guerra da Uber com a Lyft, outro aplicativo de corridas, e da aliança de Kalanick com Arianna Huffington (Uma Thurman), cofundadora do site de notícias “The Huffington Post”, que se tornou membro do conselho da startup.
A crise da Uber com a Apple também é revivida, recordando que o aplicativo de transporte quase foi retirado da Apple Store, em 2015, por violar a privacidade dos usuários. O serviço continuava rastreando os smartphones mesmo depois da desinstalação do app.
Tudo vai desenhando a queda do CEO, que tem o reinado arruinado não só por deslizes morais, falhas na liderança e gastos excessivos, mas por abuso de direitos trabalhistas e por encorajar um ambiente misógino na empresa. Foram várias as acusações de assédio sexual na Uber, diante das quais Kalanick sempre protegia os funcionários homens.
No final, fica claro que a visão engrandecedora que o empreendedor tem de si mesmo o deixa convicto de que pode tudo. E o que é pior: o impede de antecipar as consequências desastrosas de seu ego gigante.
Como diz Bill Gurley, na série: “A melhor coisa sobre Travis é ele estar sempre disposto a atravessar paredes para vencer. E a pior coisa é ele achar que tudo é uma parede.”