Muita gente que não gostava de poesia mudou de ideia em algum momento nos últimos anos, depois que começou a ler os livros do poeta e compositor Vinícius de Moraes, aquele mesmo que participou do nascimento da Bossa Nova – com Tom Jobim, compôs "Chega de Saudade", cuja gravação por João Gilberto foi o ponto de partida do movimento.

Nos últimos 32 anos, a Companhia das Letras, que adquiriu seus direitos em 1991, lançou 40 volumes para adultos e crianças e, segundo a família, foram vendidos mais de 2 milhões de exemplares – ou seja, 50 mil unidades de cada título, em média. Para se ter uma ideia, esgotar duas mil unidades de um mesmo livro no Brasil é um feito extraordinário alcançado por só 5% dos títulos.

Os mais lidos de Vinícius são os mais famosos e de introdução ou formação à sua obra: "Antologia", "Livro de sonetos" e o infantil "A arca de Noé". “O mais impressionante é que não se trata apenas de um ‘poeta popular’: é poesia do mais alto nível”, observou ao NeoFeed o acadêmico Daniel Gil, que acaba de organizar o sinistro e divertido "50 Poemas Macabros", que chega às livrarias em outubro.

O "Poetinha", autor de clássicos como "Águas de Março", "Onde Anda Você" e "Garota de Ipanema" está irresistível nesta antologia recolhida de nove de seus mais conhecidos livros e do disco "Os Afrosambas", com Baden Powell, de 1966.

O volume é fruto do profundo conhecimento do organizador pela obra do poeta e da sensibilidade para perceber esse tema marcante, e traz sete poemas inéditos, extraídos de documentos do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB) da Fundação Casa de Rui Barbosa: "A consumação da carne", "A morte sem pedágio", "Cara de Fome", "Desaparição de Tenório Júnior", "O sórdido", "Parábola do homem rico" e "Poema de aniversário".

Vinicius é visto pelo mercado como um sucesso editorial de proporções incomuns. E vai na contramão da afirmação de que poesia não vende no Brasil. E se não bastasse, essa inusitada coletânea deve reafirmar essa singularidade e ir um pouco além, pois deve aproximá-lo das novas gerações, tão encantadas pelo terror e o fantástico. Ainda mais com as ilustrações de Alex Ceverny, que traduzem a "alma" da obra.

Será surpresa para quem conhecia o Vinícius de versos como “Pois há menos peixinhos a nadar no mar/Do que os beijinhos que eu darei na sua boca”. Pois é. “Já era uma dívida com Vinicius preparar uma publicação que expusesse o seu apreço pelo feio, pelo grotesco, pelo macabro”, observa Gil,  também autor de "Vinicius de Moraes, O poeta do grotesco", doutorado em Literatura Brasileiras pela Faculdade de Letras da UFRJ, defendido em 2019.

Isso porque, continua ele, em entrevista ao NeoFeed, o êxito incalculável de seus versos amorosos acaba por lhe conferir uma persona supostamente incompatível nesse gênero. Agora, não mais. Daniel Gil explica que quase nada se falava a respeito desses temas sombrios na obra do poeta, apesar de ser um aspecto fundamental.

Em 1993, conta ele, Ivan Junqueira observou que Vinicius é o poeta do amor e da morte, em rápida passagem de seu ensaio sobre o poeta. Em 2006, na publicação em que apresenta a poesia de Vinicius, Eucanaã Ferraz, com olhar sofisticado, foi além e incluiu o grotesco dentre as principais características de sua obra poética.

Esses poemas causam no organizador impressão desde a adolescência, nos tempos de escola. Em 2002, quando entrou para a Faculdade de Letras da UFRJ, assistiu a uma aula sobre o grotesco em Une Ch arogne, de Baudelaire, administrada pelo professor José Carlos Prioste. “Percebi que aquela estética estranha me soava mais que familiar. E pensava em coisas como ‘Mas apesar da necrose/ Que lhe corrói o nariz/ A moça está tão sem pose/ Numa ilusão tão serena/ Que, certo, morreu feliz’”.

Pode-se dizer, conclui o organizador, que Vinicius faz parte de uma família de poetas do extremo: “Isto é, do amor, da euforia, das paixões, do desequilíbrio, do sublime e do grotesco; opondo-se àquela que Victor Hugo chamava pejorativamente de ‘escola sóbria’”.

Mas Vinicius era, continua ele, tecnicamente um virtuose e planejava de modo cerebral cada detalhe de sua elaboração estética, sendo inclusive um precursor na poesia brasileira do intercâmbio entre línguas e do emprego do espaço gráfico para o suporte visual.

Exatamente por meio dessa expertise, ele pôde se espraiar no que mais lhe interessava, sobretudo nos riscos do extremo, destaca o organizador. Importa dizer também, de acordo com ele, que ainda é um campo aberto para estudo a presença do simbolismo como uma das linhagens fundamentais da poesia do século XX.

Ele acrescenta: “A versão de uma modernidade baseada grosso modo em cubismo e futurismo e, por consequência, a suspeição para com tudo o que é menos veloz e concreto, polui muito mais que explica a obra de nossos maiores artistas”.

Claro que é natural que escritores e artistas se vinculem a uma estética sinistra. Ou que construa toda a sua obra vinculada a isso, o que não é o caso. Aqueles que exploram emoções humanas como o amor, a euforia, as paixões, os desequilíbrios, Daniel Gil chama de artistas do extremo. “De maneira semelhante, a disposição à fantasia e ao nonsense é manancial comum, seja do grotesco, seja da imagética romanesca ou infantil”.

Os melhores exemplos desse universo grotesco em Vinícius, para o organizador, são os poemas "O poeta Hart Crane suicida-se no mar", "Balada do enterrado vivo", "Balada do Mangue" e "Balada da moça do Miramar". “Neles, o belo e o mórbido modelam cenas (algumas de caráter narrativo) estranhas, fantásticas. O natural se torna terrível, a realidade emerge insólita, a beleza se confunde com o repulsivo”. E fazem dele herdeiro da tradição de autores como Cruz e Sousa e Augusto dos Anjos.

Embora os poemas tenham sido escritos ao longo de três décadas, seu conjunto mostra um poeta inspirado, coerente em casar sentimentos intensos e morte, graças às suas paixões devastadoras, que flertam com melodramático e o exagero. Como no claustrofóbico "Balada do enterrado vivo": “Meu caixão me prende os braços/Enorme, a tampa fechada/Roça-me quase a cabeça/Se ao menos a escuridão/Não estivesse tão espessa!”.

Há poemas curtos de meia página ou longos de até sete páginas e versos extensos. Em "A hora íntima", há o humor do drama excessivo: “Quem pagará o enterro e as flores/Se eu me morrer de amores?/Quem, dentre amigos, tão amigo/Para estar no caixão comigo? Quem, em meio ao funeral Dirá de mim: — Nunca fez mal…” Como não lembrar de Mário Quintana, mestre do sobrenatural do amor na poesia?

O sobrenatural aparece quase como uma história em quadrinhos no clássico "Tanguinho macabro", sobre se apaixonar, abraçar e beijar uma morta que anda e fala, com aspecto e cheiro de decomposição. Ou seria melhor chamá-la de zumbi?

Outro poema na mesma pegada é "A consumação da carne": “Não me enterrem/ Queimem-me/Morra como viveu/O poeta que como eu/Toda a vida ardeu”.

O humor volta em "O Pranteado": “Lavem bem o morto/Com bastante álcool/Depois passem creme/Depois passem talco/Esfreguem extrato/Por todo o seu corpo/Porque ele urinou-se/No último esforço./— Que morto mais chato!/ — Que morto mais porco!”.

Se a morte pontua o livro inteiro, não podia faltar um poema exclusivo sobre a mais temidas das peças que a vida prega a todos. No curto "A morte", ele escreve;

“A morte vem de longe/Do fundo dos céus/Vem para os meus olhos/Virá para os teus/Desce das estrelas/Das brancas estrelas/As loucas estrelas/Trânsfugas de Deus/Chega impressentida/Nunca inesperada/Ela que é na vida/A grande esperada!/A desesperada/Do amor fratricida/Dos homens, ai! dos homens/Que matam a morte/Por medo da vida”.

E por aí vai, em dos lançamentos mais deliciosos do ano. E uma ótima oportunidade para começar a ler poesia. Sim, poesia bestseller, mas de primeira linha.

Serviço:
"50 Poemas Macabros"
Vinícius de Moraes
Organizador: Daniel Gil
Ilustração: Alex Cerveny
168 página
Impresso:R$ 84,90
Pré-lançamento
Companhia das Letras