Ao lançar, em 2005, a SP – Arte, a advogada e colecionadora Fernanda Feitosa pretendia fomentar a expansão da arte brasileira no mercado global. Mas ela acabou fazendo muito mais do que isso. Ao longo de 20 edições, a feira, realizada anualmente, em abril, na capital paulista, se transformou no maior evento de arte da América Latina.

Com ela, o Brasil entrou definitivamente para o circuito internacional — e, tão importante quanto, os brasileiros começaram a se interessar por Alfredo Volpi, Candido Portinari, Mira Schendel, Emiliano Di Cavalcanti, Beatriz Milhazes... e por aí foi (e vai) a SP – Arte.

Há três anos, porém, Fernanda achou que era preciso ir além do mainstream e mergulhar ainda mais fundo na arte brasileira. Buscar as especificidades e pluralidades de cada região do país, que, juntas, compõem nossa identidade cultural. Assim, nasceu o evento  SP – Arte Rotas Brasileiras.

Entre 28 de agosto e 1º de setembro, no espaço ARCA, em São Paulo, a terceira edição da feira, que tem o NeoFeed como parceiro de mídia, reúne cerca de 250 nomes das artes visuais, representados por 66 galerias, de 15 estados. Do total, 40% são mulheres.

Diferente da SP – Arte, internacional, agitada e competitiva, o Rotas é uma feira de exploração e descobrimento. E isso não tem nada a ver com samba, futebol e biquini — pelo menos não com o estereótipo do made in Brazil, propalado no exterior, durante tanto tempo.

As obras a serem expostas no galpão industrial dos anos 1940, no bairro da Vila Leopoldina, são de autores já reconhecidos em suas regiões, mas uma novidade no eixo Rio-São Paulo. Para o público em geral  e, frequentemente, até para os colecionadores mais experientes e os grandes marchands.

“Muitos são artistas novos pela idade, mas muitos são artistas novos para nós”, diz Fernanda, em conversa com o NeoFeed. A paulista Sheila Ortega e o maranhense Luis Carlos Lima Santos ilustram à perfeição os dois “novos” aos quais a idealizadora da feira se refere.

De um lado, a pintora, ceramista e fotógrafa formada em artes plásticas pela Universidade Estadual de Paulista (Unesp), em 2001, com seus trabalhos que misturam objetos domésticos a memórias afetivas. E, do outro, o septuagenário autodidata e suas esculturas em argila, cimento e pó de madeira, inspiradas nos frutos e sementes da Mata dos Cocais, entre os biomas da Amazônia, da Caatinga e do Cerrado.

Fernanda estimula as galerias fazerem uma curadoria mais elaborada para a feira. “Tem 20 artistas? Não traga os 20. Escolha alguns e pense em um diálogo entre eles”, conta a diretora-executiva da SP – Arte.

A Paulo Darzé, de Salvador, traz O Mensageiro, exposição coletiva em torno de Exu, divindade cultuada em religiões de matriz africana. Com obras de Daiara Tukano, Gustavo Caboco, Jaider Esbell e Joseca Mokahesi Yanomami, a Millan enfatiza as histórias ancestrais e a luta pelos direitos das populações indígenas.

A Almeida & Dale reúne o paraense Emmanuel Nassar, a goiana Mirian Inêz da Silva e o paraibano Antonio Dias em uma “coleção” de obras acerca do processo de modernização do Brasil e da cultura brasileira no século 20. Já a Gomide&Co exibe Rotas de Afeto, uma espécie de pingue-pongue entre o trabalho de Lenora de Barros e o do pai Geraldo de Barros.

"A feira dá lugar também a esses projetos um pouquinho mais afetuosos, menos apegados ao comercial — é claro que todo mundo quer vender —, mas ela tem uma coisa do afeto", afirma a diretora-executiva.

Fernanda costuma trazer curadores internacionais para visitar o Rotas. Para a edição de 2024, dez especialistas estão confirmados.

Dessa forma, a feira ajuda a projetar alguns artistas e coletivos, para além das fronteiras brasileiras. O MAHKU é um deles. Da etnia Huni Kuin, da aldeia Chico Cururmim, Acre, o grupo foi convidado a pintar a fachada do prédio principal da última Bienal de Veneza, inaugurada em abril passado.

Há ainda o amazonense de Boca do Acre Heitor Melo (1926-2001); a goiana Kássia Borges Karajá, de 62 anos; a mineira Maria Lira Marques, de 79 anos; e a paulista Igi Lola Ayedun, de 34 anos, artista multimídia, fundadora da House of Ayedum, a primeira galeria black-owned do País, entre outros tantos criadores.

Em 2023, cerca de 15 mil pessoas passaram pela ARCA. Em cinco dias, muitas galerias venderam praticamente tudo o que levaram para o Rotas. E, unanimidade entre os expositores: os visitantes perguntavam, queriam conhecer as histórias das obras, dos artistas e suas trajetórias. É o Brasil descobrindo o Brasil, por intermédio de sua cultura.

"O orgulho da arte brasileira é muito importante", defende Fernanda. "Quando Rebeca Andrade sobe ao pódio, ela está carregando o o Brasil nas costas. Ver uma Maria Martins ao lado de um Mondrian no MoMA, em Nova York, tem um impacto igualmente grande para nós. É o tal do soft power."

A SP – Arte e o Rotas movimentam juntas entre R$ 400 milhões e R$ 500 milhões, por ano. As duas feiras representam um terço do faturamento das galerias.

Detalhe de obra de José Tarcísio (Foto: Divulgação/SP – Arte Rotas Brasileiras)

Obra de Maria Inez da Silva (Foto: Divulgação/SP – Arte Rotas Brasileiras)

Obra de Âmbar Pictórica (Foto: Divulgação/SP – Arte Rotas Brasileiras)

Obra de Emmanuel Nassar (Foto: Divulgação/SP – Arte Rotas Brasileiras)

Obra de Isabela Seifarth (Foto: Divulgação/SP – Arte Rotas Brasileiras)

Obra de Davi Rodrigues (Foto: Divulgação/SP – Arte Rotas Brasileiras)

Obra de Lenilson (Foto: Divulgação/SP – Arte Rotas Brasileiras)

Obra de Luis Carlos Lima (Foto: Divulgação/SP – Arte Rotas Brasileiras)

Obra de Madeleine Colaço (Foto: Divulgação/SP – Arte Rotas Brasileiras)

Obra de Agostinho Batista de Freitas (Foto: Divulgação/SP – Arte Rotas Brasileiras)

Obra de Sheila Ortega (Crédito: Divulgação/SP – Arte Rotas Brasileiras)

Até agora, o evento se baseou em um conteúdo 100% nacional, mas isso não quer dizer que, nas próximas edições, a feira não venha com convidados latino-americanos, avisa a diretora-executiva. Rotas traz no nome ideia de movimento, de caminhos que se cruzam, seguem adiante, para quem sabe, mais à frente se encontrarem de novo.

Veja, a seguir, os principais trechos da conversa de Fernanda com o NeoFeed:

A SP – Arte já é uma feira de arte brasileira. Por que outra?
Desde o primeiro momento, a SP – Arte é uma feira de arte brasileira com participação internacional. Atualmente, as obras e galerias internacionais representam, respectivamente, 20% e 12% do evento. Mas, nossa arte é tão boa e a variedade de artistas e galerias é tão grande que daria para a feira sobreviver como feira de arte mesmo sem as galerias internacionais — o que não é verdade em outros mercados.

Por quê?
O colecionador brasileiro é muito comprometido com a arte brasileira. Para o público internacional, vir para uma feira com conteúdo diferente do que ele vê lá fora, nas grandes feiras de arte, é um plus hoje em dia. Dada a repetição e a quantidade excessiva de feiras internacionais de arte pelo mundo, os conteúdos acabam se repetindo. A SP – Arte é brasileira, mas não é regional.

O que isso significa? 
A SP – Arte não é uma plataforma com foco na galeria do Nordeste, do Norte, do Centro-Oeste... na produção dessas regionalidades. A feira de abril é uma feira internacional com foco nas grandes galerias entre Rio e São Paulo. É onde os grandes colecionadores se encontram e, por isso, as galerias trazem obras de calibre muito alto. As melhores obras de arte, os melhores Di, os melhores Pancetti, os melhores Volpi estarão expostos na SP – Arte. Isso acaba criando uma atmosfera, com a pressão, competitividade e escassez, de uma grande feira internacional. Quando vem o Rotas, o foco é na produção regional.

O foco também é conhecer novos artistas?
Para os curadores internacionais, o Rotas é uma feira muito saborosa, porque é onde eles conhecem novos artistas, novas produções. Os artistas residentes do Sertão Negro, do Dalton Paula; da Marco Zero, em Recife; os artistas indígenas...O Volpi eles já conhecem, né?

Por que a arte regional passou a ser valorizada?
Mesmo antes da pandemia já havia sinais do esgotamento da globalização e um apreço pelo local. Mas a covid acabou impulsionando esse movimento. O Rotas surgiu muito dessa necessidade. Na feira, artistas que não são mainstream ganham um destaque especial. A galeria Lima, de São Luís do Maranhão, por exemplo. Desde que começou a fazer o Rotas, passou a fazer também a SP – Arte. E a galeria comentou comigo: “Na SP – Arte, eu tenho cinco minutos de atenção dos grandes colecionadores. No Rotas, eu tenho meia hora”. Como a feira é menor, permite essa imersão. Os olhares se voltam para essa produção. Na SP – Arte, se você perder cinco minutos, alguém compra a obra que faltava na sua coleção. Não é dizer que o Rotas não é competitivo, mas a dinâmica é outra.

E existe mercado para esse tipo de produção?
Vejo, sim, um aumento no interesse. A partir dos anos 2000, 2010, novas pautas começaram a surgir, como o movimento Black Lives Matter. E, com a pandemia, ganharam ainda mais relevância. São pautas políticas e sociais, mas também culturais. Se nós queremos que o que aparece nas feiras de arte reflita o pulso da sociedade, então as feiras de arte têm de ter artistas negros, artistas mulheres, artistas populares, artistas auditadas, artistas periféricos... E assim o Rotas formou uma identidade própria.

Essa identidade significa ser uma plataforma de expansão de horizontes?
É uma plataforma para apresentar artistas que ainda são desconhecidos para o grande mercado de arte, o que não significa que não sejam conhecidos em suas regiões. O José Tarcísio é um artista respeitado em Fortaleza, mas eu não conhecia. Uma galeria importante como a Pinakotheke vai mostrar José Tarcísio no Rotas. Ela já não faria isso na SP – Arte, para onde leva os grandes naipes da arte brasileira. Não arriscaria levar para uma feira internacional um artista novidade para nós.

A ideia é manter o Rotas com conteúdo 100% nacional?
A gente tem o desejo de tentar trazer os latinos, preservando sempre a característica da regionalidade do evento. Mas o Brasil precisa ajudar, né? O dólar precisa estar mais ou menos estável. Eu não posso convidar uma galeria para vir aqui com o dólar a R$ 5,20 e, depois de três, quatro meses, quando ela chega , o dólar está a R$ 5,60. A obra que ela ia vender por US$ 5 mil aumenta muito de preço só pela flutuação do câmbio. E isso é destruidor.

Qual é o público do Rotas?
Boa parte dos colecionadores vai em ambas as feiras, mas ficamos surpresos ao descobrir que a bilheteria de quem vai no Rotas e de quem vai na SP – Arte coincide em 400 pessoas apenas. Os públicos são diferentes. Como a SP – Arte acontece no Parque do Ibirapuera, acaba recebendo, por exemplo, muita gente que está passeando por ali. O Rotas, não. Tenho a impressão de que é um público muito focado. Um visitante menos ligado no fator investimento e mais interessado no fator descoberta: É mais “eu vou comprar algo que eu não conheço, mas que é muito interessante" do que "eu vou comprar algo que vai valorizar”.

É uma compra mais emocional.
Exatamente, ela é mais emocional. Você compra um artista que você nunca viu na vida, mas pelo qual você se apaixonou.  Assim surgiu Zimar, Rayana Rayo, Silvana Mendes, Gê Viana, Bruno Novelli...

Já dá para medir o impacto do Rotas na valorização dos artistas que expõem na feira?
Alberto Pitta é maravilhoso, um designer têxtil do Carnaval baiano, que se lançou no Rotas e agora está na Nara Roesler, expondo em Nova York. Advânio Lessa, artista representado pela Marco Zero e Gomide&Co, teve, depois do Rotas, uma valorização de 50%. E passou a integrar acervos importantes, como o da Pinacoteca, e estreou no mercado internacional na Art Basel de Miami, com vendas aquecidas. Além disso, foi convidado para uma individual em José Ignacio, no Uruguai,  em dezembro. Esses são apenas dois exemplos, mas há vários outros.