Noite de 5 de abril, 2023, Lowestoft, condado de Suffolk, costa leste da Inglaterra. A casa na esquina da Denmark Road com a Katwijk Way está embrulhada em plástico e cercada por andaimes. As ruas estão interditadas, por causa dos caminhões e guindastes.
Um grupo de moradores acompanha o vai-vém e o sobe-desce das máquinas e dos operários. Alguns gritam: “A cidade está sendo roubada; a cidade está sendo roubada”. Outros, mais discretos, lamentam Lowestoft perder seu “maior presente”. As autoridades não podem fazer nada. A propriedade é privada.
Depois de horas de um trabalho cuidadoso, um pedaço de 22 toneladas, da lateral da casa, finalmente é retirado. Nele está o grafite “Gaivota”, do inglês Banksy. Nos cálculos dos especialistas em arte contemporânea, aquele naco de parede deve valer, aproximadamente, US$ 4 milhões.
O mural fazia parte do projeto “A Great British Sparycation” (em tradução livre, “A Grande Pulverização Britânica”). Ao longo de agosto de 2021, meia dúzia de cidades às margens do Mar do Norte amanheceram “decoradas” por Banksy. Em cada muro, em cada parede, uma arte diferente. Na ocasião, o artista reivindicou a autoria das obras, em um vídeo de três minutos, no Instagram.
Bansky é um dos artistas de rua mais celebrados da atualidade pela crítica especializada; certamente o mais conhecido do público. “Conhecido” é força de expressão pois sua identidade nunca foi revelada.
Sua arte nasceu na cena alternativa da Bristol do início dos anos 1990. Com humor e sarcasmo, poesia e acidez, as obras de Bansky denunciam as injustiças, desigualdades e violências. Zombam do establishment.
Da cidade no sudoeste da Inglaterra, ele conquistou Londres. E da capital inglesa, o mundo. O artista subversivo foi então parar nas melhores galerias, nos museus mais importantes e nas casas de leilão mais sofisticadas.
Uma réplica em tela do grafite “Garota com balão” foi vendida, em outubro de 2021, na Sotheby’s, por US$ 25,4 milhões - o maior valor já pago por um trabalho do grafiteiro.
Da alegria ao pesadelo
Por isso, todos em Lowestoft comemoraram a pintura “Gaivota”. O mural impulsionou a economia da região, abalada pela pandemia do novo coronavírus. Até os aposentados Garry e Gokean Coutts ficaram contentes, quando o inquilino da casa da Denmark Road ligou para contar sobre o desenho.
Bansky fez a ave de modo a parecer que ela estava prestes a atacar uma caçamba de lixo de verdade, abarrotada de lascas de poliestireno, uma espécie de isopor, alvo frequente dos ambientalistas.
A alegria dos Coutts, porém, durou pouco. Logo, “Gaivota” virou um pesadelo, como descreveram, ao jornal inglês The Daily Mail. Eles teriam de zelar pela preservação da obra, o que lhes custaria cerca de US$ 50 mil, por ano.
Em determinado momento, quando, durante uma madrugada, vândalos ameaçaram destruir o mural, o casal se viu obrigado a contratar um guarda noturno para vigiar a obra. Isso, sem contar, a dor de cabeça com os turistas. Na plataforma TripAdvisor, o muro dos Coutts aparece como uma das atrações de Lowestoft.
Garry e Gokean não aguentaram e desembolsaram US$ 250 mil, aproximadamente, para se livrar do pássaro. Era preciso tirar o mural, sem danificá-lo e refazer a estrutura da parede lateral da casa – 12 camadas de resina e cinco toneladas de aço.
E para onde foi a gaivota? “Para um depósito, em algum lugar do Reino Unido”, segundo funcionários da empresa de engenharia, responsável pela operação de 5 de abril.
“Você não pode”
Como o estêncil “Gaivota”, muitas obras de Banksy são feitas em espaços públicos, o que dificulta a venda. O artista não dá a mínima. Ele é declaradamente contrário ao mercado de arte e à comercialização da cultura.
Em seu site, na aba “licenciamento”, o grafiteiro e ativista escreve: “Você é uma empresa que deseja licenciar a arte de Bansky? Então você veio ao lugar certo – você não pode. Somente o Escritório de Controle de Pragas tem permissão para usar ou licenciar minha arte”.
“Escritório de Controle de Pragas” faz referência a uma das figuras mais frequentes nos trabalhos do artista, ratos enormes, peludos, que parecem recém-saídos do esgoto.
Impulso de destruição
Tudo o que se refere ao artista está sempre cercado por mistério e surpresas. Nada se compara, no entanto, ao leilão da Sotheby’s, em 2018. Uma réplica em tela do mural “Garota com balão” foi arrematada por cerca de US$ 1,3 milhão.
O martelo mal acabara de bater, quando soou um alarme e a obra começou a se autodestruir. Deslizou por um triturador, escondido atrás da moldura, na parte inferior do quadro. Enquanto o desenho era feito em tiras, Banksy comentava em suas redes sociais, citando o espanhol Pablo Picasso: “O impulso da destruição também é um impulso criativo”.
Nem tudo, porém, saiu com previsto. A engenhoca travou e a picotagem não foi completa. Em vídeo no YouTube, o autor mostra o passo a passo de seu plano de destruição. A engenhoca, conta, estava pronta fazia tempo. À espera somente do momento em que a obra fosse colocada à venda. Seus representantes garantiram que a Sotheby’s não sabia de nada.
A tatuagem de Bieber
Pintada em um muro de Londres em 2004, “Garota com balão” é um do grafites mais famosos de Bansky. A menina de vestido preto, tentando pegar um balão em forma de coração, está em um sem-número de produtos, ainda que o autor não autorize ninguém a usar suas obras para fins comerciais
Foi parar até no braço direito do cantor canadense Justin Bieber. Nas fotos do cantor canadense, nas redes sociais, o grafiteiro reagiu e escreveu “controverso”. O músico foi tão criticado que apagou a tatuagem. Banksy ironizou: “De volta à normalidade”.
Agradecimento de US$ 21,5 milhões
Até os US$ 25,4 milhões, com “O amor está no lixo”, a obra mais valiosa de Bansky era “Jogador desafiante”. Leiloado em março de 2021, o desenho foi vendido por US$ 21,5 milhões e o dinheiro, doado para instituições assistenciais.
Em tons de cinza, um menino brinca com uma boneca enfermeira, desprezando os super-heróis na cesta de brinquedos. Banksy mandou a obra para o Hospital Geral Southampton, instituição pública, localizada no sul da Inglaterra. Uma homenagem aos profissionais da saúde, que, naquele momento, estavam na linha de frente no combate à covid-19.
Na dedicatória, ele escreveu: “Obrigado por tudo o que estão fazendo. Espero que ilumine um pouco o lugar, mesmo que seja apenas preto e branco”. Existe amor nas obras de Banksy.