Há muitas formas de contar a história de um país, de um povo ou de uma época. O jornalista e crítico de arte Ross King viu na revolução da pintura e no milionário negócio em que se transformaram as galerias de arte um modo inusitado de mostrar como a França viveu momentos antagônicos entre os anos de 1863 e 1874.

Em "O julgamento de Paris – A revolução artística que deu origem ao impressionismo" (Editora Record), King conta que, nesse período, o país atravessou um tempo de violência por causa de conflitos como a Guerra Franco-Prussiana e o Cerco de Paris de 1871 pelos alemães e prussianos.

Só que, ao mesmo tempo, as artes plásticas – além da literatura – viviam um esplendor nos salões anuais, onde pintores e gravuristas em busca de glamour e riqueza conviviam com uma corrente que defendia uma ruptura radical com um passado conservador e saudosista.

Sua intenção era aposentar grandes mestres que tinham se tornado milionários, acostumados a retratar batalhas históricas, figuras heroicas ou manter fidelidade às reviravoltas políticas. Importava para a nova geração mostrar o homem comum, seus costumes, vestimentas e cotidiano, além de elementos da sexualidade, que chocaram parte da elite francesa por um tempo.

Com isso, deram origem ao que ficaria conceituado como Impressionismo, que se estenderia até o começo da Primeira Guerra Mundial – o termo veio de uma crítica a um quadro de Claude Monet, "Impressão, nascer do sol", de 1872.

O título "O julgamento de Paris" é um trocadilho com o mitológico concurso de beleza entre as deusas Hera, Atena e Afrodite, julgado por Páris.  E não é por acaso.

King adentra os salões anuais para esmiuçar a caminhada do Impressionismo para se estabelecer, os principais acontecimentos, diversas formas de conflitos e figuras centrais, no período entre duas exposições de arte: o escandaloso Salão dos Recusados (1863) e a Primeira Exposição Impressionista (1874).

Seu foco são os artistas, com suas desavenças, discordâncias e alianças, júris de arte, críticos e o grande público ao redor do anual e prestigiado Salão de Paris e demais acontecimentos do mundo artístico. Nada que guerras paralelas e que seriam esquecidas no futuro pudessem ofuscar na época.

King contrapõe dois pintores que melhor representaram esse extremo entre o antigo e o novo, a tradição e a modernidade: Ernest Meissonier e Édouard Manet, respectivamente. “Visões do passado estavam por toda parte na França”, escreve ele. “A moda da corte de Napoleão III imitava as de séculos anteriores, com homens usando chapéus bicornes, calções e meias de seda”, acrescenta.

A sensação de nostalgia, afirma o autor, predispunha o público francês a gostar das pinturas de Meissonier, celebradas pelo maior crítico de arte do país, Téophile Gautier, como “uma completa ressurreição dos tempos idos”. Ele prezava pela representação de momentos históricos com precisão meticulosa.

Por décadas, a fama fez do pintor um dos artistas mais ricos de seu tempo. “A pintura histórica estava no topo da rígida hierarquia pregada pela Académie des Beaux-Arts, a prestigiada instituição encarregada de definir os rumos da arte francesa”.

A pintura ideal, portanto, era aquela em que personagens bem conhecidos da Bíblia, da história nacional ou da mitologia clássica realizavam façanhas heroicas e, assim, ofereciam ao público uma convincente inspiração moral.

Até que uma provocação tem início, capitaneada pelo vanguardista Manet, que soube aproveitar as oportunidades para balançar as estruturas da pintura francesa, em meio a polêmicas, resistências e embates. King conta que, com apreço ao estilo próprio, ele se voltou para paisagens e pessoas comuns e, com isso, transformou a história da arte.

Antes, o dândi Manet teve de lutar contra o desejo do pai de vê-lo um continuador de seus prósperos negócios. Até tentou afastá-lo da pintura com uma carreira breve na Marinha, encerrada após uma viagem de seis meses ao Brasil – nenhum detalhe é apresentado sobre esse episódio que o fez se decidir pelas artes plásticas.

“Se Meissonier era belicoso e arrogante, Manet, um belo jovem de cabelos louro-arruivados, era a encarnação do charme. Espirituoso e sociável, ele tinha ao mesmo tempo um humor contagiante e uma personalidade independente que fazia dele o líder natural dos artistas mais jovens”.

Um aspecto de destaque da narrativa é o quanto as exposições interessavam aos franceses como atividade cultural, turística e de negócios. Ainda mais o Salão Anual, como o de 1861, que em poucos meses atraiu um milhão de pessoas – uma média de 23 mil visitantes por dia, um feito que não seria batido até o século XXI. O ingresso de um franco ajudava a chamar até mesmo os assalariados.

Tanta audiência seria fundamental para ajudar novas ideias a se estabelecerem e fundir a cabeça da crítica, difundidas por outros nomes como Alfred Sisley (1839-1899), Camille Pissarro (1830-1903), Edgar Degas (1834-1917), Auguste Renoir (1841-1919) e Claude Monet (1840-1926). Um marco nesse sentido foi o quadro O almoço na relva, de Manet, finalizado em 1863, que causou polêmica por exibir uma jovem nua entre dois homens.

Ao mesmo tempo, a reconstituição do cotidiano, as relações de amizade entre os impressionistas e escritores, jornalistas, atores, pintores e intelectuais mostram uma impressionante efervescência cultural em que uma das finalidades de muitos artistas de diversas correntes era, sem dúvida, a riqueza com a venda de suas obras. E não foram poucos que alcançaram isso.

A economia que surge em torno do mercado de arte – pinturas, esculturas, gravuras etc. – ganha amplitude no decorrer da obra de King. Como, por exemplo, quando trata da quantidade de modelos, entre homens e mulheres, contratados para posar.

Eles atendiam centenas de artistas e a relação entre eles estava longe de ser amistosa, muitas vezes. Havia uma indústria de material para pintura e empregos como de funcionários de galerias, marchants, agentes, leiloeiros etc.

Em mais de 500 páginas, com riqueza e precisão de detalhes, King ajuda a entender por que Paris virou uma cidade mítica e artistas de diversas formas de arte fizeram fortunas e criaram as primeiras celebridades mundiais.

Era um tempo em que a moda também começava a ditar costumes, estava na base para comandar toda a cultura ocidental nos cem anos seguintes, mesmo com a ascensão da indústria cultural americana, principalmente do cinema.

Capa do livro

Serviço:
O julgamento de Paris
De Ross King
Editora Record
518 páginas
R$ 79,92