É o próprio Sebastião Prata (1915-1993), que adotou o nome artístico de Grande Otelo, quem conta a sua história no documentário “Othelo, o Grande”. O que salta aos olhos aqui são as conquistas de um ator negro, um dos mais importantes da história da dramaturgia brasileira, ainda no século 20, quando o racismo era escancarado na indústria cultural.

“Foi como sobreviver dentro de uma selva”, afirmou o ator, em depoimento de arquivo no filme, uma das atrações desta 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. “Tive de usar todos os truques. Os bons e os maus, na medida do possível, na medida das minhas características e das minhas qualidades intrínsecas.”

Isso explica Otelo ter aceitado tantos papéis que reforçavam o estereótipo dos negros na produção audiovisual. Quase sempre ele interpretava bêbados, serviçais, malandros ou simplesmente os “crioulos” dos cortiços. E sem reclamar – do contrário, o ator não teria trabalho.

E mesmo quando era contratado, Otelo lembra nos depoimentos aqui que sempre ganhava menos que os atores brancos. Em alguns casos, Otelo não podia sequer entrar pela porta da frente nos cassinos em que fazia apresentações. Como o Cassino da Urca, onde negro durante muito tempo só tinha acesso pelos fundos.

“Com Othelo, resgatamos o racismo estrutural que sempre existiu no Brasil”, contou ao NeoFeed Ailton Franco Jr., o produtor do filme, com exibições neste sábado (21/10), e na terça, (24/10), dentro da programação da Mostra.

“No século 20, principalmente na primeira metade e no início da segunda metade, as piadas sobre negros e a forma como o branco se referia ao negro eram muito pejorativas. E ninguém questionava o racismo. Tudo era levado na brincadeira, como uma maneira jocosa de falar”, comentou Franco Jr., sobre o que hoje é enquadrado como racismo recreativo.

Ele dispensou depoimentos de familiares, amigos, historiadores ou jornalistas de entretenimento no filme. “Neste caso, diferentemente dos documentários mais tradicionais, não havia necessidade de entrevistados falando sobre a importância de Otelo. Ele mesmo podia fazer isso”, contou o produtor.

A equipe do filme reuniu cerca de 300 horas de material de arquivo, de onde saíram as principais declarações do biografado para o documentário.

“Quando cheguei ao Rio de Janeiro, quase não havia ator negro”, afirmou Otelo, lembrando que era ainda mais raro um que fosse levado a sério na profissão. “Eu só encontrei um ator negro no Teatro Recreio. Ele abanava um branco, que estava sentado em trono. E o branco dizia: Sacode, Sofia! Esse era o nome de uma macaca que estava no jardim zoológico”, contou Otelo, no filme.

Olhando para trás, o documentário dá a entender que o ator fez o que foi preciso para conquistar o seu espaço e contar a sua história do seu jeito, com as limitações de um outro tempo. O documentário reproduz uma cena da chanchada “Este Mundo É um Pandeiro” (1947), onde o personagem do ator é obrigado a ouvir o seguinte comentário de um branco: “Não sei como uma cabeça tão preta pode ter um pensamento tão claro”.

Mas nada impediu que Otelo ganhasse projeção nacional. Foram mais de 100 filmes, além de conteúdo de audiovisual para televisão e dezenas de peças de teatro. “Sou o primeiro Sancho Pança negro da história”, disse Otelo, em comercial para TV para a montagem de “Homem de La Mancha”, que estreou em 1973, no Rio de Janeiro.

Houve também trabalhos emblemáticos para o debate sobre racismo no Brasil, sobretudo no cinema. Como o seu personagem sambista que sofre preconceito em “Rio, Zona Norte” (1957), dirigido por Nelson Pereira dos Santos, e como o guardião das crianças em refúgio de escravos que ele interpretou “Quilombo” (1984), assinado por Cacá Diegues.

Vencedor do prêmio de melhor documentário no último Festival do Rio, o filme traz ainda Otelo relembrando algumas de suas conquistas no cenário internacional. Em 1982, ele rodou “Fitzcarraldo”, com o alemão Werner Herzog, além de ter chamado a atenção do americano Orson Welles para participar do filme inacabado “It’s All True” (1942).

Otelo ainda conseguiu outro feito, ao se projetar como um ator cômico e, aos poucos, obter o mesmo reconhecimento no drama. “Não há nenhum ator, por mais cômico que seja, que não goste de fazer o público chorar de vez em quando. E não há nenhum ator, por mais dramático que seja, que não queira fazer o público rir.”