Tem cenas de camarim, lembranças de infância e recordações de tempos delirantes. Tem também denúncias de abuso, preconceitos e momentos da vida aqui e agora, com suas rugas e cabelos brancos. Mas não é nada disso o que mais chama a atenção na série documental “As Supermodelos”, lançada pela Apple TV+.
O que surpreende é o vínculo genuíno entre Linda Evangelista, Cindy Crawford, Christy Turlington e Naomi Campbell. O vínculo que mudou a dinâmica de poder de toda uma indústria.
Do início dos anos 1980 a meados da década seguinte, as “The Four”, como são chamadas, revolucionaram o trilhardário mundo da moda. Cada uma com seu estilo, sua história de vida e personalidade, mas juntas, transcenderam as passarelas e as capas de revista. Elas se tornaram maiores do que os fotógrafos que as retratavam e os estilistas que as vestiam. Linda, Cindy, Christy e Naomi eram o próprio espetáculo.
Antes das “The Four”, as modelos (ou melhor, manequins) eram como “cabides vivos, sem humanidade”, conta Robin Givhan, crítica do jornal americano The Washington Post, no primeiro dos quatro episódios da série. Exceção feita, com muitas ressalvas a Twiggy, nos anos 1960, e Laura Hutton, nos 1970, não tinham nome e eram silenciosas.
As quatro mudaram radicalmente o status quo. Com personalidade, determinação e muito trabalho, acresceram o prefixo “super” à profissão de modelo. Foram elas também que levaram os cachês às alturas. Ainda que a canadense, hoje, com 58 anos, tenha se arrependido, quem esquece a frase de Linda?
“Eu não me levanto da cama por menos de US$ 10 mil”, escancarou, na época, a mais “camaleoa” das quatro. Se hoje a brasileira Gisele Bündchen faz US$ 45 milhões anuais, ela tem muito a agradecer às “The Four” pela graça alcançada.
“Nós éramos a representação física do poder”, diz a americana Cindy, de 57 anos, na minissérie. “Nós parecíamos mulheres fortes. E nos olhávamos no espelho e começamos a acreditar nisso.” Elas e o planeta. Como compara a designer Donatella Versace, as quatro foram as primeiras fashion influencers – em um tempo em que, sem mídias sociais, “influenciar” era bem mais difícil.
Certa vez, desfilando para a estilista Vivienne Westwood (1944-2022), a inglesa Naomi, 53 anos completados em março, se estatelou na passarela. A meia calça de látex colou uma perna na outra e ela veio ao chão. A modelo se levantou e prosseguiu com bom humor. Depois do acidente, vários designers começaram a pedir que Naomi caísse para eles como havia caído para Vivienne.
Dirigido pelo cineasta americano Roger Ross Williams, vencedor do Oscar de melhor documentário curta-metragem de 2011, com “Music by Prudence”, “As Supermodelos” mostra que, mais do que colegas de profissão, Linda, Cindy, Christy e Naomi eram amigas. As quatro se conheceram adolescentes e cresceram juntas, em um ambiente, por vezes, bastante hostil e ameaçador.
“Elas foram a minha aula”, define a americana Christy, de 54. “Este é o grupo com o qual atingi a maioridade.” Emocionada, Naomi lembra: quando era preterida por modelos brancas, as outras se levantavam contra o racismo. “Elas me apoiaram e ficaram ao meu lado”, conta. Não foram raros os momento em que Linda se colocou firme em defesa da amiga. “Se você não contratar Naomi, você não me contrata”, diz.
Os laços entre as “The Four” eram estreitos. Trabalhavam juntas e se apoiavam, em uma época na qual ninguém falava em sororidade – muito ao contrário. Ajudavam-se entre elas e aos outros, como lembra o estilista Marc Jacobs, no documentário.
No início de carreira, ele só podia trabalhar com modelos que topassem ser pagas com roupas. Christy aceitou. “Na temporada seguinte, Christy convidou Cindy”, afirma o designer. “E então veio Naomi e depois Linda.”
Elas já eram modelos de estúdio famosas quando foram chamadas para fazer a capa de janeiro de 1990. Sob as lentes do fotógrafo alemão Peter Lindbergh (1944-2019), era a primeira vez que posavam juntas. A imagem traz também a alemã Tatjana Patitz, morta em janeiro, aos 56 anos, vítima de câncer de mama. Foi um sucesso.
Mas o que as lançou para o estrelato planetário, porém, foi o videoclipe da música Freedom! ’90, de George Michael (1963-2013). Como o compositor e cantor inglês não queria aparecer no vídeo, substituiu a si mesmo pelas cinco. Foi um estrondo. E elas viraram celebridades.
O estilista italiano Gianni Versace (1946-1997), por sugestão da irmã Donatella, convidou-as para o desfile de outono-inverno de 1991. E aqui mais uma tradição rompida pelas “The Four”. Normalmente, as modelos de foto não subiam às passarelas, sobretudo as de alta-costura. Mas lá foram elas, rindo, dançando, brincado umas com as outras.
Ao fundo, a música de George Michael, enquanto, elas desfilavam e cantavam: “All we have to see/Is that I don’t belong to you/ And you don’t belong/To me, ya, ya/ Freedom, freedom.” As “The Four” exalavam a consciência de seu poder.
Por causa do documentário de Williams, a Vogue decidiu reunir as quatro para uma nova capa, 33 anos depois da edição de janeiro de 1990. Causou comoção – para o bem e para o mal. Enquanto alguns comemoravam o encontro, outros criticaram a revista por ter manipulado a imagem.
A revista alegou ter feito retoques mínimos. Grandes ou pequenos, não importa. A manipulação da imagem vai contra o que as quatro, como mulheres maduras, hoje, defendem. Um dos momentos mais tocantes (e corajosos) do filme, inclusive, é o depoimento de Linda, no último episódio, sobre seu próprio corpo.
Entre 2015 e 2016, ela se submeteu a um tratamento estético que acabou deixando-a, como a própria define, “deformada”. Com a promessa de murchar as células de gordura, via congelamento, o coolsculpting pode ter o efeito contrário em 1% dos pacientes. Se Linda soubesse do risco, ela diz, não teria feito. “Eu queria gostar do que via no espelho”, conta. “Mas o que aconteceu com meu corpo foi um pesadelo.”
E, das quatro, a canadense é justamente a única que queria ser modelo desde o início. Cindy, Christy e Naomi foram descobertas e entraram na profissão por acaso. Linda, não: “Eu não fui escolhida. Eu escolhi”. Enquanto lutava contra as sequelas do procedimento estético, ela ainda enfrentou uma mastectomia radical, por causa de um câncer de mama, e a sua recidiva, anos depois, no pulmão.
Algumas com obstáculos maiores do que as outras, o fato é que as quatro seguem poderosas, com suas rugas e cabelos brancos, como empresárias, ativistas e mães. “Somos mulheres – éramos mulheres na época, mas éramos mulheres jovens. Agora somos totalmente mulheres em nosso poder, e nossos corpos”, diz Christy. “Talvez voltemos em 30 ou 40 anos.”