“Isso é doloroso de assistir. Mas tem de ser doloroso mesmo.”

Quem avisa é o correspondente de guerra da Associated Press (AP), o ucraniano Mstyslav Chernov, no início do documentário 20 Dias em Mariupol, com o qual ele concorre ao Oscar neste domingo, 10 de março.

O profissional se refere ao conteúdo forte das imagens que ele capturou assim que a Rússia invadiu seu país, em fevereiro de 2022.

O que ele documentou em Mariupol, uma das cidades mais bombardeadas, chocou o mundo, ao mostrar que os alvos dos ataques russos não eram militares, como Moscou pretendia fazer crer.

No filme, recém-chegado aos cinemas brasileiros, Chernov registrou crianças mortas, corpos sendo jogados em valas e também mães, filhos e idosos desesperados em meio ao caos.

Pelo trabalho, que trouxe sobretudo a percepção dos civis, o correspondente da AP conquistou o Prêmio Pulitzer de Serviço Público, na área de jornalismo, e venceu o Oscar de melhor documentário.

Talvez a cena mais impactante seja a de Iryna Kalinina. Aos 32 anos, ela estava prestes a dar à luz, quando a maternidade onde era atendida foi atingida por um míssil russo. Muito machucada, Iryna foi retirada às pressas do lugar, carregada por quatro homens, em uma maca.

Depois, quando Chernov foi procurá-la, no hospital para onde ela foi levada, descobriu: a mulher e a criança estavam mortas. A pélvis de Iryna fora esmagada pelos destroços, durante o bombardeio, como sua barriga ensanguentada já sugeria.

O bebê, um menino chamado Miron, "nasceu morto". A mãe não resistiu aos ferimentos e faleceu meia hora depois do parto. Capturada pelo jornalista e fotógrafo ucraniano Evgeniy Mamoletka, a imagem ganhou o prêmio de fotografia do ano, pela World Press Photo Foundation.

Essa e outras passagens do documentário podem levantar questões sobre a ética no trabalho de um correspondente de guerra. Até porque a profissão sempre exerceu um grande fascínio.

Trata-se de um profissional que arrisca a vida e, ao mesmo tempo, precisa estabelecer limites, sobretudo na hora de decidir o que mostrar e o que não mostrar, para evitar acusações de exploração de uma tragédia em benefício próprio.

Aos 39 anos, Chernov, que é o diretor, roteirista e produtor do documentário, é um correspondente experiente. Ele já cobriu conflitos armados no Iraque, na Síria e também em seu país. Na Ucrânia, registrou a Revolução da Dignidade, na capital Kiev, e a Guerra em Donbas, na região da Bacia do Donets.

“Minha mente quer esquecer tudo isso desesperadamente. Mas a câmera não deixa”, diz Chernov no filme, reforçando sua posição, caso ela já não esteja evidente apenas com as imagens.

Para o cinegrafista e fotojornalista, essa é a natureza da profissão: documentar as atrocidades, por mais sangrentas que sejam.

"Minha mente quer esquecer tudo isso desesperadamente. Mas a câmera não deixa”, diz Mstyslav Chernov, no documentário (Crédito:Taylor Jewell/Invision AP)

O fotógrafo Evgeniy Maloletka circula por uma Mariupol devastada, no primeiro dia da invasão russa, em 24 de fevereiro de 2022 (Crédito: Mstyslav Chernov)

Em Mariupol, um edifício residencial explode depois de ser atingido por bombas russas (Crédito: Evgeniy Maloletka)

Ucranianos se refugiam em um teatro improvisado em abrigo (Crédito: Mstyslav Chernov)

É o próprio Chernov quem faz a narração de situações desoladoras, como o sofrimento dos pais que perderam os filhos e o choro de médicos diante da morte de crianças. Até eles pedem que o documentarista mostre as vítimas, “para que o mundo veja o que está acontecendo”.

Chernov e seus colegas de equipe (Evgeniy Maloletka, Vasilisa Stepanenko e Lori Hinnant) foram os únicos a permanecer em Mariupol, quando a cidade começou a ser destruída pelas tropas russas.

O grupo testemunhou bombardeios, seguidos de corte de água e de suprimentos, além de tentativas frustradas de abertura de um corredor humanitário.

Foram 20 dias, como o título adianta, com a equipe registrando tudo, enquanto fugia dos soldados russos, até que eles finalmente escaparam de Mariupol, levando um quantidade enorme de material filmado na bagagem.

A guerra como um raio-X

Embora admita se sentir culpado por ir embora, Chernov sabe que, em uma situação como essa, as chances de sair com vida diminuem a cada dia e que as imagens precisam chegar rápido ao seu destino, na esperança de conscientizar a opinião pública.

Além de registrar os danos causados pelos ataques, o documentário desvenda as dificuldades que a equipe encontrou para enviar parte do material aos veículos de comunicação.

Muitas vezes, só era possível encontrar sinal de Wi-Fi nas áreas ainda mais perigosas. Conforme as imagens começaram a circular pelo mundo, o documentário resgata a reação do Kremlin, classificando os registros como fake news.

A Embaixada da Rússia em Londres chegou a usar as redes sociais para declarar que as cenas do resgate de Iryna eram falsas, com atores usando maquiagem, enquanto insistia que o prédio bombardeado estava inoperante.

O que talvez surpreenda o espectador é o fato de Chernov não perdoar o mal comportamento de alguns ucranianos, o que poderia naturalmente passar despercebido, diante da tragédia imposta pela Rússia ao país vizinho.

Ele registra a ganância daqueles que saem para saquear lojas durante o cerco de Mariupol, simplesmente porque a pilhagem se tornou favorável.

Como Chernov diz, no documentário: “A guerra é como um raio-X. Revela o que há dentro do ser humano. As pessoas boas ficam ainda melhores. E as más, piores”.

(Reportagem atualizada em 10 de março, às 22h10, com o resultado do Oscar)