Não é fácil biografar gênios. Ainda mais quando são controversos, reservados e cercados por mistério. Os historiadores Robert P. Kolker e Nathan Abrams, porém, dão conta do recado ao narrar a história de um dos gênios do cinema em Kubrick: Uma odisseia, recém-lançado no Brasil pela editora Belas Letras.

Nascido no Bronx, em Nova York, filho de um médico e de uma dona de casa, Stanley Kubrick (1928-1999) teve sua vida e obra esmiuçada em outras tantas biografias, documentários, trabalhos acadêmicos e exposições. Ele até já foi citado no desenho animado Os Simpsons e reverenciado pela grife de luxo Gucci, na coleção outono/inverno de 2022.

“Há uma razão para tanto interesse", observam os autores. "Seus filmes perduram, não apenas porque são obras-primas cinematográficas, mas também porque o cineasta era um enigma.” Baseado em pesquisas recentes, documentos privados e novas entrevistas com familiares e colaboradores, Kubrick: Uma odisseia avança na elucidação dessa incógnita.

Se nos sets de filmagem de obras-primas como 2001: Uma odisseia no espaço, Laranja mecânica e O iluminado, o cineasta era controlador e obcecado pela perfeição; na intimidade, ele era engraçado, caloroso e generoso — zeloso do ambiente doméstico e pai atencioso. “Eu tenho uma vida relativamente normal”, costumava dizer Kubrick.

Só se "normal" for produzir arte extraordinária ao fazer exigências extraordinárias de si mesmo. E esse é o ponto alto da biografia: o cotidiano do diretor revela bastante de sua personalidade — e de seu processo criativo.

“Kubrick nunca estava não fazendo um filme”, contam Kolker e Abrams. “Por mais que lamentemos que só haja 13 longas-metragens completos, houve dúzias de projetos aos quais ele dedicou sua extraordinária atenção ao longo da vida.”

O diretor passava o tempo todo buscando a história que acenderia sua imaginação cinematográfica, o que aconteceu poucas vezes. Mas ele amava essa etapa do fazer cinema: pensar e planejar e, então, construir uma história, pré-produzir e editar. A filmagem propriamente dita era apenas “necessária”.

Nos anos de 1990, quando nada apareceu entre Nascido para matar (1987) e De olhos bem fechados (1999), Kubrick estava, na verdade, planejando dois grandes projetos: um filme sobre o Holocausto, que se chamaria Aryan Papers, e a ficção científica A.I.

“Por que eles nunca foram feitos, ou, no caso de A.I., não por Kubrick, é parte de nossa história”, afirmam os autores.

O roteiro sobre a inteligência artificial não foi concluído porque o cineasta achava que nunca estava perfeito o suficiente e ele esperava que as tecnologias de imagens geradas por computador evoluíssem o bastante de modo a que se adequassem às suas necessidades.

Havia ainda a intenção de fazer filmes sobre casamento, ciúmes e infidelidade. Entre 1954 e 1956, enquanto esteve casado com a dançarina austríaca Ruth Sobotka, Kubrick trabalhou em pelo menos três roteiros em torno desses temas. As tramas refletiam conflitos íntimos de relacionamento, que pareciam ecoar tensões pessoais que ele vivia na época.

Ruth foi o segundo casamento de Kubrick. O primeiro, com Toba Metz, sua namorada do ensino médio, durou de 1948 a 1951. Em 1958, ele se casou com a atriz e pintora alemã Christiane Harlan, com quem ficou até morrer. Eles tiveram duas filhas, Vivian e Anya — além de Katharina, primogênita de Christiane, a quem o cineasta tratava como uma das suas.

Como explicou Kubrick, "2001: Uma odisseia no espaço" evita a palavra dita para alcançar o subconsciente do espectador de um modo "essencialmente poético e filosófico"

“A violência de 'Laranja Mecânica', feito no rebote, talvez tenha sido em parte uma expressão da raiva que Kubrick sentiu pela perda de seu projeto de estimação”, escrevem Kolker e Abrams, sobre o projeto do filme "Napoelão" que nunca saiu do papel

Estrelado por Tom Cruise e Nicole Kdman, "De olhos bem fechados" foi finalizado poucos dias antes de Kubrick morrer

Com 688 páginas, o livro custa R$ 169,90 (Foto: Editora Belas Letras)

Um ponto delicado na biografia de Kubrick foi seu relacionamento com Vivian. Pai e filha eram próximos. Aos 17 anos, ela dirigiu um documentário sobre o making-off de O iluminado e compôs a trilha de Nascido para matar, sob o pseudônimo de Abigail Mead. Em 1995, porém, Vivian entrou para a Cientologia e se afastou da família, especialmente do diretor.

Foi um golpe duro para Kubrick. O cineasta teria escrito uma longa carta, com cerca de 40 páginas, pedindo que a filha voltasse para casa e convidando-a para assinar a trilha de De olhos bem fechados, de 1999. Mas ela se recusou a atender o pedido paterno. Kubrick morreu em 7 de março daquele ano, vítima de um infarto, enquanto dormia.

Desde jovem, como autodidata, ele assistiu a todos os filmes que conseguiu encontrar no Bronx ou no Museu de Arte Moderna de Nova York, que exibia retrospectivas de cinema estrangeiro. Mesmo na juventude, Kubrick acreditava que conseguia fazer um filme melhor do que aquele que havia acabado de ver.

Isso era mais do que arrogância juvenil, dizem Kolker e Abrams. “Ele se formou a partir da sua infância cinéfila nos anos de 1940 e por seu trabalho como fotógrafo na [revista] Look [entre 1946 e 1950]. Lia avidamente e via um filme atrás do outro".

Nos anos 1950, Kubrick fez muitos filmes. As obras se tornariam esparsas na década seguinte, quando ele filmou Lolita, Dr. Fantástico e 2001: Uma Odisseia no Espaço. Depois de Laranja mecânica, de 1971, a Warner garantiu: qualquer projeto apresentado por Kubrick seria financiado e distribuído. Não havia, portanto, mais pressa para produzir ou buscar por financiamentos.

Surgia assim a lenda do gênio perfeccionista de processo lento. Kubrick rodaria Barry Lyndon, em 1975, O iluminado, em 1980, e Nascido para matar, em 1987. De olhos bem fechados foi finalizado pouco tempo antes de sua morte.

Com segurança financeira e, mais importante para ele, segurança doméstica, sem querer ou precisar de exposição pública, o diretor podia ficar e trabalhar em casa, cuidar da família e de seus bichos de estimação. Pensar, ler e se preparar para os filmes que queria fazer.

A quantidade de preparação para Napoleão, que ele planejava para depois de 2001: Uma odisseia no espaço, foi impressionante. O cancelamento do projeto, se não foi devastador, ainda assim o afetou.

“A violência de Laranja Mecânica, feito no rebote, talvez tenha sido em parte uma expressão da raiva que Kubrick sentiu pela perda de seu projeto de estimação”, escrevem Kolker e Abrams.

Para Kubrick, um filme era algo vivo, orgânico. “Ele nunca parava de mexer em seus filmes, até mesmo nas cópias para vídeo. A edição de 2001: Uma odisseia no espaço aconteceu depois da estreia nos cinemas”, contam os biógrafos.

Todos os seus filmes a partir de Lolita, de 1962, foram feitos na Inglaterra, para onde ele se mudou com a família em 1965.  Lá, a vida intelectual era mais livre — como expatriado, ele podia criar suas próprias normas. “Uma das grandes vantagens de ser estrangeiro era que ninguém esperava que ele soubesse regras locais”, relatam Kolker e Abrams.

“O ‘louco recluso’ era, é claro, um mito estimulado pelos tabloides britânicos, frustrados pela falta de acesso, e disseminado por teóricos da conspiração malucos e muitos outros que não conseguiam assimilar muito bem a realidade de uma celebridade que escolheu viver fora do olhar público”, dizem.

Mas o cineasta não se esforçava para mitigar essa fama. Difícil é resistir a rever todos os filmes de Kubrick enquanto se lê Kubrick: Uma odisseia.