O compositor, cantor e músico baiano Caetano Veloso chega aos 80 anos no dia 7 de agosto com uma jovialidade que impressiona. Há tempos, não produzia tanto e fazia tantos shows. É com vitalidade que continua a caminhar contra o vento, mesmo com lenço e documento no bolso faz tempo.

Caetano tem um RG – ou seria DNA? – que o preserva como o artista mais influente da cultura brasileira nos últimos 55 anos, desde que estourou no Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em 1967, de forma polêmica, com a música Alegria, alegria.

A canção é uma das mais emblemáticas da década que dividiu ao meio o século XX. Na gravação, ele promoveu uma ruptura na forma de compor letras. Desse modo, Caetano organizou o movimento da Tropicália, que abriu a porteira da poesia musical brasileira e a libertou do formalismo, do romantismo cheio de rimas e regras métricas e vocabulário empolado.

A partir daí, a guitarra deu o tom, marca de refrigerante ícone da cultura pop virou tema de verso e a língua portuguesa ganhou um novo verbo, caetanear, estabelecido por Djavan.

A guitarra deu o tom, marca de refrigerante ícone da cultura pop virou tema de verso e a língua portuguesa ganhou um novo verbo, caetanear, estabelecido por Djavan

Era a antropofagia que de manifesto virou lema e fez uma deliciosa bagunça na MPB. Caetanear é ser lírico, poético, delicado, declarar uma paixão ou se indignar ontem, hoje e sempre, de dizer que gosta de roçar a língua que falamos com o português medieval de Camões ou dizer “eu sou neguinha” contra o machismo e o racismo.

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Se tudo isso não bastou, ganhou o Brasil o Caetano cantor, músico de primeira linha, compositor sofisticado, influenciador digital, formador de opinião e quase um garoto a bradar contra as injustiças sociais e a indiferença durante a pandemia. E se ficar apenas como um dos melhores poetas, quando ouvimos Roberto Carlos cantar dele “eu vi o menino correndo, eu vi o tempo, brincando ao redor do caminho daquele menino”?

Pois é, Caetano continua a brincar com o tempo e sua obra fica mais poderosa a cada dia, mês e ano. É essa a impressão ao examinar as suas mais de 300 composições, reunidas em Letras, volume organizado por Eucanaã Ferraz para a Companhia das Letras e que chega às livrarias no dia 29 de julho.

É um volume daqueles que poderiam começar a formação de uma biblioteca. Em 512 páginas, a partir do projeto gráfico de Raul Loureiro, a edição traz a discografia completa do artista, com os diferentes formatos de mídia – LP, CD, DVD, etc.

A obra faz parte das celebrações de seu aniversário. As letras foram reunidas a partir de sua produção mais recente, que faz parte do disco Meu coco, lançado no exterior em mídia física no ano passado, até suas primeiras composições. “Fico quase sem palavras”, declara Caetano, na apresentação do livro.

“Tenho apenas de confessar que em nenhum caso eu aprovei a letra (ou a música) quando cheguei a completá-la. Com o passar do tempo — e o esquecimento das obras —, tenho me surpreendido com alguma admiração e até com certo encanto diante de uma ou outra canção que fiz”.

"Com o passar do tempo — e o esquecimento das obras —, tenho me surpreendido com alguma admiração e até com certo encanto diante de uma ou outra canção que fiz”

Um modesto Caetano escreve que não deixa de ser para ele uma celebração ver reunidas tantas letras “de músicas minhas no ano em que chego aos oitenta”. Ele se diz um apaixonado pela forma canção, pela palavra cantada, “e me sinto honrado em ter um conjunto de peças dessa natureza nas quais chego eu mesmo a ver, às vezes, alguma beleza. Sinto alegria diante desse monte de peças construídas com pouco rigor, apesar de com muito amor”.

Uma de suas confissões é que passou anos se prometendo escrever uma canção (ou um grupo delas) que redimisse a “irresponsabilidade” com que se entregou à função de cancionista.

“Recentemente, tenho mais é me prometido parar de compor, simplesmente para não aumentar o número já grande demais de musiquinhas olvidáveis. No entanto, este livro sai num momento em que descumpri tal promessa. A feitura do repertório do álbum Meu coco foi um irrefreável surto de composição, sendo este um long-play meu em que todas as canções são minhas, letras e músicas, coisa que só tinha acontecido no disco Cê”.

O organizador destaca o impacto de cada letra ao revê-las no processo de edição. E as sintetiza com propriedade. Por suas palavras: “O quereres é sempre um espanto”. “Meu bem, meu mal vale por um dicionário de rimas”. “Tropicália e todas as canções contemporâneas a ela ainda surpreendem e continuam a suscitar debates e interpretações”.

Um índio salta por sobre o imaginário indigenista do século XIX para alcançar um romantismo cósmico, pós-apocalíptico”. “Peter Gast empurra-nos para o silêncio e a solidão com uma propensão reflexiva que, na poesia brasileira, encontra parentesco na escrita de Drummond — revisitado literalmente em algumas letras — e na de poucos outros”.

Um índio salta por sobre o imaginário indigenista do século XIX para alcançar um romantismo cósmico, pós-apocalíptico

É um repertório que só se consegue dimensionar quando se tem o livro nas mãos. Continua ele: “Cajuína, com a gravidade de seu verso de abertura — ‘Existirmos: a que será que se destina?’”. “O homem velho e Noite de hotel seguem na mesma direção”. “Terra é uma espécie de ‘máquina do mundo’ contemporânea em funcionamento pleno”.

Sampa ajudou a moldar a visão que os paulistanos têm de si mesmos, alcançando espontaneamente o valor de hino de uma cidade”. “Oração ao Tempo atinge um tom elevado com enorme concentração, e sua mística reside no alumbramento dos ritmos que reúnem todas as coisas vivas em perfeita aliança. Essa mística da natureza, digamos assim, aparece também em Força estranha.

A lista de sucessos é quase interminável e leva a pensar que o título do livro, de certo modo, simplifica demais o que deveria ser tratado não como “letras”, mas “Poesia reunida” de Caetano, tamanha a “força estranha” de uma obra poderosa, cuja leitura leva o leitor a caminhar por mais de meio século de história do Brasil, a acompanhar as transformações de uma obra inesgotável.

Sampa ajudou a moldar a visão que os paulistanos têm de si mesmos, alcançando espontaneamente o valor de hino de uma cidade

E mais uma vez, o tempo se faz presente, é a sua passagem que define a perenidade de algo, que transforma algo em clássico ao preservar seu frescor e eternidade. Não que o tempo tenha sido generoso com Caetano, foi ele quem dobrou o tempo.

SERVIÇO:
Letras, Caetano Veloso e Eucanaã Ferraz (Org.)
Editora Companhia das Letras
Número de páginas: 512
Preço: R$ 129,90 / e-book: 49,90
Lançamento: 29/07/22