Cunhada em 1822 pelo gravador Zeferino Ferrez e fabricada na Casa da Moeda do Rio de Janeiro, a Peça da Coroação, que marcou a ascensão de Dom Pedro I ao trono como imperador do Brasil, é o item mais raro da recém-aberta exposição de longa duração “Espaço Herculano Pires – Arte no dinheiro”, em cartaz no Itaú Cultural, em São Paulo.

O exemplar fazia parte de um lote de 64 peças, dos quais hoje existem apenas 16. É considerada a moeda mais valiosa da numismática brasileira. Há, no entanto, um porém: ao perceber que a peça não atendia às suas expectativas – entre outros equívocos, o imperador havia sido representado com o busto nu, usando uma coroa de folhas de louros – Dom Pedro I ordenou a suspensão da cunhagem, até que no ano seguinte uma segunda versão foi feita, com o monarca devidamente fardado.

Historiador e numismata, Edson Martins é o coordenador do Núcleo de Artes Visuais e Acervos do Itaú Cultural, responsável pelo espaço Herculano Pires, e considerado um “guardião” do conjunto em exibição na mostra. Em entrevista ao NeoFeed, Martins conta que a exposição “Arte no dinheiro”, cuja curadoria é de Vagner Porto, mestre e doutor em Arqueologia, tem suas origens ainda nos anos 1980, quando foi montada na sede do Banco Itaú da antiga Rua Boa Vista, no centro da capital paulista.

Ela reunia apenas parte da coleção do banco e era restrita à diretoria. Era um acervo ainda incipiente, privado e pertencente ao bancário Herculano Pires, então membro do Conselho de Administração do Itaú. Após a morte do funcionário, sua família vendeu tudo ao banco para não ver a “coleção ser pulverizada”, afirma Martins.

O conjunto de Pires tinha cerca de 800 moedas, de ouro, prata, cobre, níquel, cuproníquel, alumínio e bronze. Para ampliá-lo, o banco convidou o numismata Alfredo Gallas para montar uma coleção completa de moedas do Brasil, viajando o mundo se necessário para completá-la.

“Hoje, este acervo tem mais de 7 mil peças, que cobre desde o início de nossa história oficial, em 1500, até os dias de hoje”, conta Martins. “Temos aqui as primeiras moedas cunhadas no Brasil, a primeira que chegou ao Brasil com Pedro Álvares Cabral e até as moedas do Real.”

O espaço expositivo de “Arte do dinheiro” é permeado por vídeos e atividades interativas. Destaca-se também a acessibilidade, com objetos táteis.
O espaço expositivo de “Arte do dinheiro” é permeado por vídeos e atividades interativas

Dividida por temas, a mostra abriga alguns fatos interessantes, como o sistema de trocas dos povos originários com os portugueses, com objetos pré-monetários. O escambo incluía algodão, especiarias, cana-de-açúcar, pau-brasil, açúcar mascavo etc., coisas cujo valor variava de acordo com os ciclos econômicos do país, segundo o numismata.

Às quase 2 mil moedas, foram acrescentados 464 selos, 36 cédulas, 500 medalhas, condecorações, livros raros, objetos diversos ligados ao universo monetário. Com a exposição, e em sintonia com as iniciativas de reparação histórica que atravessam setores diversos da sociedade, o Itaú Cultural busca lançar luz sobre este acervo de modo a entender “a trajetória da construção dos diversos brasis e identidades culturais brasileiras, desde os primórdios até a atualidade”, como destaca o comunicado da instituição.

A propósito, ressalta Martins, os indígenas foram representados em “pouquíssimos casos”, como em cédulas dos anos 1950 e 1990, apenas. Também foram retratados em algumas medalhas, a exemplo de uma em que Dom Pedro II é coroado, com 14 anos de idade, por um indígena, “que representaria a ideia da nação brasileira, o romantismo do bom selvagem”, avalia Martins.

Outra tema abordado é a invisibilidade dos negros na numismática brasileira. Nos anos 1930, uma moeda estampou o escritor Machado de Assis, por exemplo. E, em 1988, uma moeda de 100 cruzados trouxe uma figura feminina negra para celebrar o Centenário da Abolição da Escravidão. A propósito, mulheres praticamente não foram retratadas no dinheiro brasileiro. Entre as raras exceções estão uma medalha de Maria Quitéria, heroína brasileira do exército, e uma cédula com a escritora Cecília Meireles.

itau-229x300.jpg" alt="“Zero Cruzeiro” (1978), feita com papel moeda" width="150" height="197" /> “Zero Cruzeiro” (1978), feita com papel moeda

Uma seleção de 26 obras de arte contemporâneas, algumas delas pertencentes ao acervo do Itaú, propõe diálogos com a coleção e reflexões acerca do que é exibido. Uma delas é uma crítica social clássica do artista plástico Cildo Meireles: “Zero Cruzeiro” (1978), feita com papel moeda.

Entre os trabalhos mais recentes está uma fotografia de Vik Muniz da série “Dinheiro Vivo” (2022), realizada em parceria com Casa da Moeda do Brasil. Nela, Muniz discute o valor de uma obra de arte ao retratar os animais que estampam as cédulas do dinheiro nacional, como a tartaruga marinha, o mico-leão-dourado e a arara vermelha, a partir de fragmentos de papel moeda.

Martins salienta que, ao longo dos séculos e até hoje, a história oficial do Brasil é retratada nas moedas, cédulas e em medalhas, sem que haja questionamentos. “Com a mostra, a gente faz um contraponto, a gente vê a história não contada nessa numismática, traz as obras de arte para fazer essas reflexões. Isso está certo? É algo bacana para se valorizar? A exposição questiona o visitante o tempo todo”, conclui.