Onde está o Picasso?

O caso surgiu como um grande mistério. E, como tal, ganhou as manchetes. Depois de cerca de duas semanas, a polícia espanhola anunciou na sexta-feira, 24 de outubro: a obra Naturaleza muerta con guitarra nunca saiu de Madri. Foi, sim, esquecida na entrada de um prédio na avenida Pio XII, de onde deveria ter sido embarcada para uma exposição em Granada.

Ao que tudo indica, não houve crime algum. De perfeito, apenas o descuido — uma falha terrível de logística envolvendo uma pintura de € 600 mil, assinada pelo gênio cubista.

Pintado em 1919, com 12,7 por 9,8 centímetros e pertencente a um colecionador particular, o trabalho em guache e grafite estava programado para integrar a mostra Bodegón — La eternidad de lo inerte, organizada pela Fundación CajaGranada.

A exibição, porém, foi inaugurada em 9 de outubro com apenas 57 das 58 naturezas-mortas dos séculos 17 e 20, como previsto no programa do centro cultural. Onde está o Picasso?

O mistério começou em 25 de setembro, quando as obras começaram a ser reunidas em Madri e embaladas para a viagem até Granada. Cerca de uma semana depois, elas deixaram a capital. E chegaram ao seu destino em 3 de outubro.

"Como nem todos os pacotes estavam devidamente numerados, não foi possível realizar uma verificação completa sem desembrulhá-los", explicaria o porta-voz da entidade.

Três dias se passaram até que as embalagens fossem abertas e os funcionários da instituição granadina se dessem conta… onde está o Picasso?

Mais quatro dias e a Polícia Nacional foi notificada do sumiço. Imediatamente, a natureza-morta do pintor de Málaga foi incluída na lista de obras de arte roubadas ou desaparecidas da Interpol — uma base de dados com a descrição e imagens de cerca de 57 mil objetos.

Aí foi um tal de avaliar documentos, contar e recontar quadros, ver e rever imagens de câmera de segurança — de Madri a Granada. Na investigação, descobriu-se que os dois homens responsáveis pela carga resolveram pernoitar na cidade de Deifontes, distante de Granada apenas 25 quilômetros. Uma parada totalmente fora do cronograma.

As autoridades municipais e os policiais vasculharam tudo. Nada de Naturaleza muerta con guitarra. Onde está o Picasso?

O mistério só fazia crescer… até o post da Polícia Nacional no X anunciar: o Picasso fora encontrado.

Em 24 de outubro, a Polícia Nacional da Espanha anunciou o reaparecimento da pintura Naturaleza muerta con guitarra (Foto: Reprodução X)

Picasso pintou dos 8 aos 91 anos, até morrer em 1973 (Foto: commons.wikimedia.org)

Detalhe do quadro “Tête de femme” que foi roubado em 2012 e só foi encontrado quase dez anos depois (Foto: commons.wikimedia.org)

Abandonado no beiral do edifício madrilenho, uma moradora achou que o pacote era uma entrega esquecida por um de seus vizinhos e decidiu guardá-lo em casa.

Quase duas semanas depois, quando a perda da pintura foi tornada pública, o marido comentou sobre o sumiço e a senhora lembrou da tal “encomenda”. O casal correu para entregar o embrulho para a polícia. O invólucro estava intacto, como fora lacrado para ser levado para Granada.

Produzida um ano após o fim da Primeira Guerra Mundial, a obra pertence a uma fase da arte europeia conhecida como Retorno à ordem. Muitos artistas, inclusive os vanguardistas, voltaram a temas clássicos em resposta ao caos imposto pelos conflitos.

Pablo Picasso também revisitou o figurativismo, mas sem abandonar seus princípios criativos. Na pintura do violão sobre uma cadeira, o cubismo ainda está lá — suavizado, mas presente.

O preferido dos ladrões

O desaparecimento de uma obra do artista espanhol já justificaria qualquer estardalhaço. O sobressalto, porém, foi ainda maior porque há anos Picasso lidera o ranking da plataforma global Art Loss Register, com quase 700 obras roubadas ou desaparecidas.

Um dos furtos mais emblemáticos e também o de maior valor aconteceu na noite de 9 de janeiro de 2012, na Galeria Nacional de Atenas.

Valendo-se da precariedade dos sistemas de vigilância do museu, o ladrão disparou um alarme, forçando o único segurança do lugar a ir para outro lado do prédio.

Em apenas sete minutos, ele levou embora a tela Tête de Femme, de 1949 — um presente de Picasso em reconhecimento à resistência do povo grego à ocupação nazista do país, entre 1940 e 1944.

Avaliada hoje em € 26,2 milhões, a pintura só seria encontrada em 2021, escondida em uma moita na zona rural de Keratea, a 45 quilômetros da capital da Grécia.

Mas o que torna Picasso tão atraente para o submundo da arte?

Em primeiro lugar, sua produção prolífica. Ele começou a pintar em 1889, aos 8 anos, e só parou em 1973, ao morrer, com 91 anos. Foram cerca de 13,5 mil obras, entre pinturas, desenhos, gravuras, cerâmicas, esculturas, cenários e figurinos para teatro, conforme a Fundación Picasso.

Também pesam as cifras astronômicas atingidas por seus trabalhos, entre os mais valiosos do mundo. Sua obra mais cara, Les Femmes d’Alger (Versão ‘O’), de 1955, por exemplo, foi arrematada em 2015 por US$ 179,4 milhões, em leilão realizado pela Christie’s, em Nova York.

Para escalar ainda mais o susto com a perda da pintura, de 70% a 80% das obras roubadas jamais são encontradas, apontam relatórios da Unesco, Interpol e Art Loss Register.

O comércio ilegal de arte é o tercerio mais lucrativo, atrás apenas do tráfico de drogas e de armas. Um crime que movimenta globalmente de US$ 6 bilhões a US$ 10 bilhões por ano.

Graças à senhora da avenida Pio XII, em Madri, o pequeno Naturaleza muerta con guitarra está seguro em casa — uma história que começou como um enigma internacional e terminou como uma crônica de bairro. No fim, o Picasso nunca saiu de onde sempre esteve.