San Sebastián — Ícone da literatura, sobretudo ao capturar o que há de mais absurdo, solitário e angustiante na condição humana, Franz Kafka (1883–1924) não merecia uma cinebiografia comum. Foi pensando nisso que a diretora polonesa Agnieszka Holland decidiu explorar o legado do escritor austro-húngaro deixando que o passado e o presente se misturassem, criando algo surreal, próprio do imaginário kafkiano.
O resultado pode ser conferido em Franz Antes de Kafka, uma das atrações desta 27ª edição do Festival do Rio, com exibições nesta terça, 7 de outubro, e no domingo, 12 de outubro. Trata-se também do representante da Polônia na categoria de melhor filme internacional na próxima edição do Oscar — por ter a polonesa Metro Films entre as empresas coprodutoras.
“Nada poderia ser como as pessoas esperavam que fosse. Tive de desconstruir um pouco Kafka e procurá-lo em fragmentos, quebra-cabeças e camadas”, contou Holland, 76 anos, ao NeoFeed, durante a recém-encerrada 73ª edição do Festival Internacional de Cinema de San Sebastián (SSIFF), onde o filme disputou a Concha de Ouro.
Foi no norte da Espanha, no balneário basco, que Franz Antes de Kafka fez a sua première europeia — depois da primeira exibição mundial no Festival de Toronto. E por onde passa, o filme recebe críticas mistas, por sua abordagem experimental para aquele que foi um dos autores mais influentes do século 20.
O que faz Franz Antes de Kafka mais destoar das demais cinebiografias são os saltos narrativos repentinos. Por mais que o título se proponha a recapitular acontecimentos na vida do autor em Praga (quando a cidade pertencia ao Império Austro-Húngaro), nada impede que a trama pule para a capital checa nos dias de hoje.
Por um lado, Holland não resiste aos fatos biográficos. Tudo o que é importante para entender quem foi o autor de A Metamorfose (1915), O Castelo (1922) e O Processo (1925) é revisitado aqui.
Sua infância solitária em família judia de língua alemã, seus desentendimentos com o pai dominador (para quem escrever era algo “estúpido”), sua rotina de trabalho em uma companhia de seguros (de onde veio a frustração com a burocracia, usada em sua obra) e os problemas de saúde enfrentados ao longo da vida. Foi a tuberculose que o matou prematuramente, aos 40 anos.
Por outro lado, Holland busca entender o que Kafka representa hoje, principalmente para as novas gerações. Uma cena de época com Kafka pode ser interrompida por sequências contemporâneas rodadas no Museu Franz Kafka, em Praga, ou em locais que o autor frequentou, incluindo o lago onde ele costumava nadar, visitado no dia da filmagem por turistas japoneses.
Nesses intervalos na história, guias turísticos dão uma ideia do legado de Kafka, lembrando que a proporção é de um para dez milhões, quando se considera as palavras escritas pelo autor e as palavras escritas sobre ele. Os mesmos guias ainda comparam a produção de cartas de Kafka aos e-mails e aos tuítes de hoje, buscando pontos em comum.
“O público adulto pode não rir tanto no filme, mas os jovens sim, mesmo que a maioria deles não tenha lido um livro de Kafka na vida”, afirmou Holland, entusiasmada ao perceber uma conexão das novas gerações com o escritor.
“Eles se reconhecem em Kafka. Seja pela sua dificuldade em se comunicar (Kafka admitia que escrever era difícil) ou pelo sentimento de não pertencer, de se sentir um estranho nesse mundo”, disse ela, citando a aclamada obra sobre alienação e exclusão social do autor, A Metamorfose.
Aqui o protagonista vira um inseto asqueroso da noite para o dia, acabando rejeitado pela família e pela sociedade. Daí a diretora ter incluído a participação especial de uma barata na trama.
Holland é mais conhecida por obras de cunho político. Entre elas, Filhos da Guerra (1990), indicado ao Oscar de melhor roteiro adaptado, Na Escuridão (2011), que concorreu à estatueta da Academia de melhor filme estrangeiro, e Zona de Exclusão (2023), vencedor do Prêmio Especial do Júri de Veneza.
“Perdi os meus avós paternos, judeus, durante o Holocausto”, contou a diretora, que na adolescência e juventude foi “obcecada” por Kafka. “Em termos de identidade, eu o via como um irmão, por Kafka não se sentir em casa em lugar nenhum, em nenhuma língua, em nenhum país e em nenhuma época. E, por muito tempo, eu me senti exatamente assim”, contou ela, ao final da entrevista. “Com o filme, espero deixar claro que aí residia tanto a fraqueza quanto a força de Kafka.”