Deixasse Gal Costa quieta, no canto dela, e o mundo seguiria em paz. Como boa soteropolitana, tinha a capacidade de reagir com firmeza a qualquer provocação, embora vivesse na contraditória discrição franciscana da vida privada e provocantes atitudes na pública, principalmente com figurinos, pois adorava expor o corpo na juventude.

Ou, de modo mais preciso, fazia isso na exuberante fase hippie – sim, nenhuma cantora brasileira aderiu tanto à contracultura quanto ela, que fez isso antes e depois de Janis Joplin, embora tentem apontar uma influência da americana sobre a brasileira.

Mas que nada. Gal sabia onde estava seu umbigo e nariz. E expunha ambos, além da barriga e do biquini que enlouqueceu os fãs e os censores no período mais crítico da ditadura, na capa do álbum Índia, de 1973. Nesses momentos em que ela era 'futucada' em entrevistas, o típico baiano de Salvador partiria com um “Olhe, me deixe”, para depois dizer o que pensava. Gal era assim.

A artista andrógina, espécie de David Bowie de saias, chegava com posicionamento pensado, sem deixar espaço para questionamentos do que achava sobre como se comportar. E coitado do entrevistador se ultrapassasse a linha de sua vida pessoal.

Como artista segura e firme, Gal era capaz de ficar em silêncio por um longo tempo, mas só entre um disco e outro. Até voltar com um álbum novo que falava por si e no qual, por diversas vezes, levantava alguma bandeira que marcava posição como artista militante que se tornara com o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Mas a seu modo, por meio de provocações. Estrela de primeira grandeza da música brasileira desde sempre, membro do quarteto baiano de ouro Doces Bárbaros, formado também por Caetano, Maria Bethânia e Gil, Gal teve uma das mais importantes carreiras da MPB.

Coerência, no seu caso, queria dizer que seguia valores e princípios dos quais nada havia a discutir ou não se permitia falar em concessões. Fez isso, porém, com uma elegância impressionante. Se o Brasil vivesse em uma monarquia, ela seria fácil uma candidata a rainha, a soberana, que cantava para os seus súditos canções que marcariam suas vidas para sempre.

Na verdade, Gal viveu quase assim, mas como rainha informal. Afinal, cantava o que todos queriam ouvir – os intelectuais e eruditos que curtiam composições refinadas de Caetano às marchinhas de Braguinha e Moraes Moreira.

Voz suprema

A morte de Gal, aos 77 anos, na quarta-feira, 9 de novembro, fez uma fã comentar em uma rede social: “Eu não fazia ideia de que pessoas como ela morreriam um dia, achava que estariam aí para sempre”.

Esse espanto tem a ver com o quanto ela e seus discos representam para a música brasileira, em uma carreira de 58 anos sem jamais perder o pedestal de voz suprema da MPB.

Aliás, sua trajetória começou no momento em que explodiam os festivais da canção na TV e a crítica musical adotava essa sigla, para Música Popular Brasileira, como forma de diferenciar músicas mais elaboradas e poeticamente mais sofisticadas.

Capas de discos de Gal Costa, como o icônico Índia, censurado pela ditadura, e o memorável Fa-Tal, de sua fase da contracultura

Gal logo foi alçada ao topo como exemplo dessa classificação e nunca mais saiu de lá. E nem vai. Virou referência porque chegou pronta, com uma vasta cultura musical que vinha de Francisco Alves, Ary Barroso e Dorival Caymmi e passou por Assis Valente e João Gilberto.

Enquanto dava os primeiros passos, ainda na primeira metade da década de 1960, assimilava como um catalizador fenômenos pop – uma novidade na indústria musical – como Beatles e Jovem Guarda e, mais adiante, Jimi Hendrix e Janis Joplin. Era uma tropicalista bem antes dos amigos Caetano, Gil e Tom Zé, sem jamais reivindicar para si uma merecida importância nesse capítulo da MPB.

Mesmo sem fazer alarde em suas entrevistas e declarações, toda a sua carreira foi marcada por tomada de posições que causaram impacto na história cultural e até política do país. Com os amigos exilados, tomou para si a missão de manter o movimento tropicalista vivo.

E desafiou a censura no momento mais opressor do regime, aos 26 anos, em 12 de outubro de 1971, quando estreou no Teatro Tereza Rachel, em Copacabana, o show Gal a Todo Vapor, também conhecido como Gal Fa-Tal, que a transformaria em uma espécie de musa do desbunde e vertente solar da contracultura brasileira, como se escreveu depois.

Com figurino andrógino de hippie, cabelo black power e nenhuma maquiagem, ela subia ao palco com sua voz estridente e quase gritando de fúria. Não acabou proibida de cantar, mas sofreu bastante pressão.

“Foi uma barra pesada para ela, praticamente sozinha aguentando a pressão, porque muita gente não compreendia e nem aceitava bem as transgressões do movimento tropicalista”, observa o crítico musical baiano Gutemberg Cruz, uma das maiores autoridades sobre a vida e a obra da conterrânea.

De Salvador, Cruz acompanhava sua musa e para quem Gal se destacava por sua voz cristalina. “Ela tinha um canto de rouxinol”, diz. O crítico a entrevistaria incontáveis vezes. “Ela era sempre atenciosa solícita, muito legal. Perdemos uma das mais bonitas e ousadas vozes da música popular brasileira, dona de um dos melhores timbres de nossa música,”

Para Cruz, a cantora foi uma revolução das vozes e dos costumes na MPB. “O disco Meu nome é Gal serviu como carta de apresentação unindo Jovem Guarda e Tropicália. Dedicou-se ao suingue de Jorge Ben Jor com Que pena (Ela já não gosta mais de mim) e foi pelo rock com Cinema Olympia, de Caetano”. Segundo o crítico, nos anos de 1970, Gal se tornou uma personagem icônica da cultura brasileira.

“Com pouca roupa e muita coragem, botava uma flor no cabelo, tomava um violão e encarava o palco sozinha, de pernas abertas. Depois apareceu seminua na capa de um disco (Índia), regravou a guarânia que dava nome ao álbum, ousou imitar sons de pássaros e fechou os trabalhos com a já saudosa Desafinado, de João Gilberto”.

O crítico observa ainda que Gal era “avassaladora” como artista ainda nos anos 1960, quando engatinhava na carreira. “Com sustenidos e bemóis de quem era dona da própria garganta, ela ia da reflexão das letras de Gil e Caetano à introspecção das canções de Torquato Neto. Divina maravilhosa. É assim que Gal Costa foi, é e continuará sendo conhecida por todo o Brasil. Sua voz incomodava ditadores e censores. E se tornou a mãe de todas as vozes”.

Recomeços constantes

Tudo isso serviu de base para uma carreira que sempre encontrava novo fôlego a cada disco. Ou força para recomeçar. O relativo fracasso do disco Cantar, de 1974, idealizado por Caetano – e que nasceu com o intuito de mostrar toda sua excelência como cantora – deixou-a baqueada.

Mas, em 1975, gravou a música de abertura da novela Gabriela, Modinha para Gabriela, de Dorival Caymmi, que se tornou grande sucesso e a levou a um retorno às raízes baianas, no bem-sucedido disco Gal Canta Caymmi (1976).

A aclamação popular de Gal Costa, que já havia ganhado forma nos sucessos Balancê, Festa do Interior, Meu Bem Meu Mal e Açaí, do disco Fantasia (1981) se confirmou com o álbum Bem Bom, de 1985 – o mais vendido da cantora, com um balanço vanguardista de Arrigo Barnabé (a faixa-título) e dois arrasa-quarteirões da dupla Michael Sullivan e Paulo Massadas, Um Dia de Domingo, em dueto com Tim Maia, e Chuva de Prata, com Roupa Nova.

Nas duas décadas seguintes, em shows memoráveis e discos impecáveis, Gal manteria seu nome como uma das maiores divas da música brasileira. Gutemberg Cruz destaca como emblemática uma cena do show O Sorriso do Gato de Alice, em que ela canta “Brasil, mostra tua cara…” com um tom desafiador, feroz, deixando os seios à mostra. A exibição de seu corpo causou, evidentemente, devoção de alguns e repulsa de outros. “Muita polêmica e discursos apaixonados de amor e ódio. E isso é Gal Costa”.

Cada vez mais consagrada, em 2001, foi incluída no Hall of Fame do Carnegie Hall, sendo a única cantora brasileira a entrar no Hall, após participar do show 40 anos de bossa nova, em homenagem a Tom Jobim. E seguiu em trabalhos com artistas de todas as idades. Durante a pandemia, comemorou, inclusive, seus 75 anos através de uma live arrebatadora, quando demonstrava plena forma.

Em fevereiro de 2022, teve início a esperada filmagem da cinebiografia da cantora, com Sophie Charlotte interpretando a protagonista e ainda em produção. Todos poderão ver na tela uma Gal mais completa e cuja história não terminará jamais, apesar do ocorrido quarta-feira.