O empresário e investidor americano-canadense Chip Wilson tinha apenas 32 anos, em 1987, quando descobriu ser portador de uma forma rara de distrofia muscular. Conhecida como FSHD2, na sigla em inglês, a doença, de origem genética, leva à degeneração muscular progressiva.

Apesar do distúrbio, o executivo sempre se manteve muito ativo, pessoal e profissionalmente. Empreendedor serial, em 1998 fundou a Lululemon e transformou a marca em uma gigante das roupas esportivas. Há cerca de dez anos, porém, a FSHD2 deu os primeiros sinais de sua existência. Sem conseguir levantar a raquete acima da cabeça, Wilson teve de abandonar o squash, seu esporte favorito.

No início de 2022, as pernas começaram a bambear. “Eu ainda consigo andar, mas preciso me concentrar muito para não tropeçar e cair”, diz ele. “Sei que um dia não conseguirei mais andar e que precisarei usar cadeira de rodas.”

O futuro será difícil. Wilson tem plena consciência. “Mas, prefiro não ser apenas um observador e, sim, usar meu tempo e dinheiro para ajudar essa causa tão importante”, afirma ele.

Dono de uma fortuna avaliada em quase US$ 6 bilhões, ele está canalizando US$ 100 milhões de seu patrimônio líquido para a empresa de capital de risco Solve FSHD. A meta é encontrar a cura para a doença até 2027.

Lançado no início de 2022, o fundo ilustra à perfeição um movimento cada vez mais poderoso no círculo das altas finanças e negócios globais: a filantropia de risco. Também chamado de “filantrocapitalismo”, o modelo recorre ao modus operandi do mercado de venture capital (VC) para nortear os financiamentos de impacto socioambiental.

A lógica por trás da nova filosofia é simples. Os investidores ultrarricos, como Wilson, têm o dinheiro para atrair talentos para suas causas e a mentalidade orientada para os resultados, muito mais do que as organizações beneficentes e o poder público.

Capital semente para boas ideias

“A filantropia está servindo cada vez mais como capital semente para boas ideias”, diz o empreendedor social Rodrigo Pipponzi, presidente do conselho do grupo Mol, em conversa com o NeoFeed. “Para algo que pode se desenvolver como negócio e resultar em retornos financeiros e comerciais."

É uma mudança radical de paradigmas. Parafraseando o velho ditado popular, o lema de agora poderia ser: “Fazer o bem olhando a quem - e ao lucro que a ‘boa ação’ pode proporcionar”. “A noção tradicional do doador passivo que fica feliz em simplesmente entregar um cheque não se enquadra em grande parte da experiência contemporânea”, escreve o ativista político Nicholas Reece, no artigo “Is ‘philanthrocapitalism’ the future of Australian charities?”, para a plataforma The Conversation.

É possível (e preciso) ir além das ações paliativas, lembra Pipponzi. A doação de comida para quem tem fome continua importante, mas não toca no ponto nevrálgico da questão. “O principal desafio da filantropia é encontrar uma forma de torná-la sistêmica, de causar um impacto duradouro e de mudar a dinâmica de um setor”, pontua Mauricio Coutinho, diretor executivo da Yunus Negócios Sociais, no Brasil, em entrevista ao NeoFeed.

O economista Muhammad Yunus foi o precursor da filantropia como negócio social (Reprodução)
O economista Muhammad Yunus foi o precursor da filantropia como negócio social (Reprodução)

E, para tanto, há dois caminhos, pontua ele: ou via políticas públicas ou via setor privado. Não é nova a ideia de fazer da filantropia um negócio social. Vem da década de 1980, com o economista bengali Muhammad Yunus, ganhador do prêmio Nobel da Paz, de 2006.

“O conceito de negócio social foi pensado para gerar lucro, sim. Mas esse lucro é reinvestido na própria empresa, para garantir a sustentabilidade do negócio social”, afirma Coutinho. “O lucro não é para enriquecer um acionista.”

E é essa a grande diferença entre os filantropos, como Yunus, e os filantrocapitalistas, como Wilson. A Solve FSHD já destinou cerca de US$ 30 milhões, para uma dezena de healthtechs. O maior aporte, US$ 10 milhões, foi para a americana Vita Therapeutics.

Reed Jobs quer captar US$ 400 milhões para investir na <a href=
cura do câncer (Reprodução)" width="355" height="200" /> Reed Jobs quer captar US$ 400 milhões para investir na cura do câncer (Reprodução)

Lançada em 2018, a empresa foca no desenvolvimento de novas terapias à base de células-tronco pluripotentes. Em apenas cinco anos, a healthtech levantou US$ 63 milhões, junto a sete financiadores, informa a plataforma Crunchbase. O valor dos cheques é um sinal inequívoco de que os capitalistas de risco apostam no potencial da Vita Therapeutics –e esperam lucrar com as inovações da startup.

O mais novo “filantrocapitalista” do ecossistema healthtech é Reed Jobs, de 32 anos. Primogênito de Steve Jobs, cofundador da Apple, e da filantropista Laurene Powell Jobs, o jovem anunciou recentemente a criação do Yosemite Management. Previsto captar US$ 400 milhões, o fundo tem por objetivo apoiar iniciativas em busca da cura do câncer. Reed tinha 20 anos, quando o pai morreu, em 2011, vítima de um tumor maligno no pâncreas.

O Yosemite já levantou US$ 200 milhões, com investidores pessoais e institucionais. Entre eles, John Doerr, presidente da Kleiner Perkins e financiador original da Amazon e da Google (hoje Alphabet), o Memorial Sloan Kettering Cancer Center, a Universidade Rockefeller e o Massachussetts Institute of Technology (MIT).

A filantropia de risco joga luz sobre o conceito de “blended finance”, a combinação de recursos de fontes (e propósitos) diferentes. Uma parte vem de doações, feitas por organizações sem fins lucrativos ou bancos de fomento, por exemplo –ou seja, é dinheiro não reembolsável. E a outra, de capital remunerados de investidores. “Com essa estrutura, é possível atrair mais dinheiro, viabilizar retorno e reduzir riscos”, diz Coutinho. “É uma revolução no mundo da filantropia.”

Um dos casos mais notáveis do potencial de impacto sistêmico da filantropia de risco é o da organização americana EB Research Partnership (EBRP). Fundada em 2010, por Jill e Eddie Vedder, vocalista da banda Pearl Jam, a entidade busca a cura para a epidermólise bolhosa (EB). Doença genética, hereditária e rara, caracteriza-se pela incapacidade do organismo em produzir a proteína responsável por fixar as duas camadas mais superficiais da pele.

A organização de Eddie Vedder, vocalista do Pearl Jam, busca tratamento para a doença EB (Reprodução)

Os pacientes têm o corpo dominando por bolhas, inclusive, internamente. A maioria não sobrevive além dos 30 anos. Em maio passado, a FDA, a agência de controle de medicamentos dos Estados Unidos, aprovou a primeira terapia genética contra a EB.

Mercado de US$ 1 trilhão

O medicamento foi produzido pela farmacêutica Krystal Biotech. Em 2017, a EBRP investiu na companhia por meio de uma colocação privada de ações ordinárias. Como parte do acordo de compra de ações, a Krystal se comprometeu a iniciar um ensaio clínico de fase 1 do remédio. Graças á forma como o negócio foi estruturado, a organização dos Vedder gerou mais do dobro do retorno de seu investimento inicial.

Não à toa, o mercado mundial de investimento de impacto cresce. No final de 2022, foi avaliado em US$ 1,1 trilhão, pela Global Impact Investing Network (GIIN). Dois anos antes, fechara em US$ 715 bilhões. Como escreve a filantropa americana Tifany Boyles, CEO da Red Philanthropy, no artigo “When is philanthropic capital relevant for social entreprise?”: “Para os empreendedores idealistas, cubram-se otimismo porque há muito capital destinado só para vocês”. Para eles e para quem investe neles.