Em 16 de setembro de 2022, a estudante iraniana Mahsa Jinâ Amini, de 22 anos, foi detida e espancada até a morte pela polícia religiosa, na capital Teerã. Seu crime: não usar o hijab de maneira “correta” — uma mecha de seu cabelo escapara do véu islâmico e estava à mostra.
A jovem não era a primeira vítima do ódio dos fundamentalistas. Nos últimos 45 anos, do momento em que os aiatolás tomaram o poder e fizeram do Irã uma teocracia islâmica, milhares de mulheres foram presas e assassinadas pelo mesmo motivo.
A morte de Mahsa, porém, foi diferente. Seu enterro se transformou em manifestação contra a opressão feminina. Em poucas horas, uma onda de protestos se espalhou pelo país, com o lema “Mulher, Vida, Liberdade”. As autoridades responderam com violência. Centenas morreram.
No primeiro aniversário do movimento, a premiada quadrinista iraniana Marjane Satrapi, reuniu uma série de artistas e intelectuais para narrar os detalhes dessa história — e tudo aquilo que não pôde ser fotografado ou filmado devido à censura. O emocionante Mulher, Vida, Liberdade sai agora no Brasil pela Quadrinhos na Cia, do Grupo Companhia das Letras.
Nascida em Resht, cidade a 40 quilômetros do Mar Cáspio, Marjane de 54 anos, é autora de um dos clássicos de nosso tempo, a autobiografia em quadrinhos Persépolis, lançada em 2007.
Mulher, Vida, Liberdade merece entrar para a lista daquelas obras que deveriam ser adotadas nas escolas.
Ao chegar à última página, o leitor terá adentrado nas entranhas de um dos regimes ditatoriais mais violentos e corruptos do mundo, em que o ódio às mulheres é uma das bandeiras mais repressoras desse começo de século.
Os textos são de Farid Vahid, cientista político da Fundação Jean-Jaurès; de Jean-Pierre Perrin, correspondente internacional do jornal Libération; e do professor Abbas Milani, historiador e diretor do departamento de Estudos Iranianos da Universidade Stanford.
E as histórias foram realizadas por um dream team de 20 quadrinistas iranianos, europeus e americanos — entre eles, os aclamados Bahareh Akrami, Paco Roca, Winshluss e a própria Marjane.
Uma revolução das mulheres, apoiadas pelos homens
Eles mostram como os protestos se transformaram em uma revolução das mulheres, apoiada pelos homens — algo sem precedentes na história mundial. Marjane fez a capa, alguns desenhos e textos. O resultado foi publicado simultaneamente em vários países e disponibilizado gratuitamente online em persa, para todos os iranianos.
Segundo a organizadora, o livro tem duas missões. A primeira é tentar explicar o que vem acontecendo no Irã, decifrar os eventos em sua complexidade e em suas nuances para o leitor não iraniano. Ou seja, quer fazer com que este os entenda da melhor maneira possível, ainda que seja impossível abordar todas as facetas dessa história. A segunda é mostrar aos iranianos que eles não estão sozinhos.
Todo material foi dividido em três blocos temáticos. O primeiro trata do assassinato de Mahsa Amini, as manifestações que se seguiram e a reação da ditadura iraniana, que em apenas uma manifestação, em Zahedan, feriu centenas e matou a bala 66 pessoas, inclusive crianças— tema de uma das histórias.
Nas ruas, mulheres de todas as idades desafiaram o poder. Em massa, tiraram o véu contra o assassinato de Mahsa. Gritavam palavras de ordem contra o regime, cortaram os cabelos.
Como a polícia iraniana usa a tática de informantes infiltrados, as líderes dos protestos foram presas, muitas estudantes foram suspensas das aulas, por vários semestres, mas a luta delas encorajou outras pessoas a protestarem.
As respostas do governo iraniano foram implacáveis. Histórias terríveis são contadas, como a das mil jovens alunas envenenadas por gases tóxicos desde novembro de 2022, em diferentes escolas de todo o Irã. Uma das narrações mostra em detalhes como quatro rapazes foram enforcados por causa das manifestações de dezembro de 2022.
A máquina de propaganda do governo, em meio ao levante popular, passou a afirmar que Mahsa Amini morreu de causa natural. “Esses agitadores corrompidos querem destruir o islã!”, disse o chefe da polícia. “Eles são os aliados dos Estados Unidos, de Israel, do Ocidente! Eles não representam nem 1% da população iraniana! De agora em diante, se saírem às ruas, eles serão severamente punidos”, prometeram as autoridades.
O início
Na segunda parte, Mulher, Vida, Liberdade mostra como os aiatolás chegaram ao poder e se perpetuaram, em meio a um controle rigoroso dos meios de comunicação, manipulação de informação, assassinatos e tortura de seus opositores, opressão contra as mulheres em nome de Deus e um poderoso sistema militar e de corrupção.
Por tudo isso, entre 20 mil e 30 mil prisioneiros políticos foram executados de 1980 a 1988. E mais de 8 milhões de pessoas deixaram o país, a maioria jovens.
O papel da televisão, nesse sentido, é impressionante, com rigoroso controle da programação. Um dos absurdos é o censor de filmes do canal de estatal ser cego. Para fazer seu trabalho, conta com a descrição de dois auxiliares. A cena de uma mulher de sapatos, mas sem meias, é cortada. Não é diferente na literatura, na música e no jornalismo.
Não podia ficar de fora Ali Khamenei, o líder supremo do Irã, comandante-chefe das forças armadas, a grande autoridade legal e extralegal de controlar e governar o país. Ele responde a cada crítica da maneira mais violenta possível, como diz uma das HQs.
O simples fato de vestir roupas que não atendam aos critérios validados pelo aiatolá pode ser visto como uma crítica política, e a pessoa que as veste pode ser considerada culpada, e então presa e castigada.
Hoje, o Corpo de Guardiões da Revolução Islâmica (CGRI) é o parceiro mais poderoso de Khamenei e sua missão é proteger a Revolução Islâmica e seu Líder Supremo, tanto dentro quanto fora do Irã.
“Todos os iranianos os conhecem e a maioria os teme e odeia. Sua história é longa e dolorosa. Não é fácil explicá-la em poucas páginas, sobretudo porque sua violência é tão imensa que o simples ato de desenhá-los me dá cãibras nos dedos. Mas é impossível falar da revolução ‘Mulher, Vida, Liberdade’ sem mencioná-los”, escreve Marjane.
E ela completa: “Da prisão de Evin até os campos de petróleo do Golfo Pérsico, do aeroporto de Teerã aos centros comerciais de Isfahan, eles são o braço armado do regime islâmico”.
"Para tirar o bolor dos cérebros"
Cerca de 80% da economia iraniana é controlada pelo regime, por meio do setor público e das oligarquias, que, em troca de apoio político, recebem suporte financeiro do governo.
Enquanto esse sistema econômico mafioso e corrupto permite que alguns líderes e seus próximos enriqueçam cada vez mais, o PIB diminuiu 60% em dez anos, a taxa de inflação anual varia entre 10% e 40%, a infraestrutura está cada vez mais defeituosa e as desigualdades sociais e econômicas explodiram.
A parte 3 do livro é sobre a luta do povo iraniano contra a opressão do regime dos aiatolás. São também apresentadas breves biografias de ícones da resistência de 2022.
Uma delas é a da jornalista Niloofar Hamedi, de 30 anos. Ela foi ao hospital onde Mahsa Amini estava em coma e tuitou a foto do pai e da avó da jovem, aos prantos. Niloofar acabou presa em 21 de setembro de 2022.
As manifestações no Irá continuam até hoje e, apesar da repressão feroz, seu lema “Mulher, Vida, Liberdade” é repetido e traduzido no mundo inteiro.
É sobretudo a juventude que impulsiona o movimento. Com cerca de 55% das pessoas com menos de 30 anos, o Irã está cada vez mais urbano e escolarizado.
Marjane Satrapi sabe a quem dedicar esse livro tão tocante: “Por minha irmã, sua irmã, nossas irmãs. Para tirar o bolor dos cérebros”.