O Brasil é o país da corrupção, já dizia Lima Barreto, há mais de um século. Bastaram alguns anos desde o golpe militar que derrubou a monarquia e instalou a República, em 1889, para ele ver a condução do novo regime com descrença. Em 19 de outubro de 1918, ele escreveu em A política republicana, na revista A.B.C.:

"A República no Brasil é o regime da corrupção. Todas as opiniões devem, por esta ou aquela paga, ser estabelecidas pelos poderosos do dia. Ninguém admite que se divirja deles e, para que não haja divergências, há a verba secreta, os reservados deste ou daquele Ministério e os empreguinhos que os medíocres não sabem conquistar por si e com independência”.

Pois é, “verba secreta” já era assunto comentado. Continuou ele, em sua crônica, sem rodeios: “Ninguém quer discutir; ninguém quer agitar ideias; ninguém quer dar a emoção. Todos querem 'comer'. `Comem' os juristas, 'comem' os filósofos, 'comem' os médicos, 'comem' os romancistas, 'comem' os engenheiros, 'comem' os jornalistas: o Brasil é uma vasta `comilança'”.

E foi a partir de Lima Barreto, no centenário de sua morte, que a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz e o cartunista Spacca encontraram uma forma das mais interessantes e divertidas para contar como o Brasil atravessou a chamada República Velha ou Primeira República: com uma história em quadrinhos, no formato de graphic novel, com textos bem cuidados e cenários e vestuário meticulosamente pesquisados e construídos.

Autora da celebrada biografia Lima Barreto – Triste Visionário, de 2018, ela e o artista transformaram o escritor – um dos grandes da língua portuguesa – em uma espécie de cicerone ou guia turístico pela história do Brasil de seu tempo em Triste República - A Primeira República comentada por Lima Barreto. Em uma linguagem ágil, os dois narram o nascimento e as contradições da Primeira República pelo olhar de Barreto.

Lilia "Até hoje Lima Barreto é um autor pouco conhecido"

Em entrevista exclusiva ao NeoFeed, Lilia faz questão de enfatizar que aquele foi um início de novo regime carregado de marcas autoritárias, em um mundo, como diz Barreto, "que a cor atua como marcador e discriminador social".

Além da fidelidade histórica, ela destaca que o escritor militante, como ele mesmo se definia, difundiu suas próprias ideias políticas e sociais, com críticas contundentes ao racismo, aos estrangeirismos e outras mazelas crônicas da sociedade brasileira.

Nesse bate-papo on-line, a partir dos Estados Unidos, onde estava em viagem, Lilia fala dos desafios da linguagem gráfica tão rica e de amplo alcance dos quadrinhos, do papel histórico de Lima Barreto como um dos intérpretes do Brasil e seu empenho para popularizar o escritor junto às novas gerações.

O que você destaca na linguagem das HQs que estimula a leitura, o aprendizado e a imaginação?
Embora tenha surgido no século 19, acho que é uma linguagem importante para o contexto atual e para comunicação com os jovens desde sempre. Eu fico muito orgulhosa de ter comprado os direitos de publicação de Tintim para a Companhia das Letras. A linguagem dos quadrinhos se renovou e é hoje bastante relevante nessa era visual em que vivemos. Nossa civilização, a ocidental, é sobretudo da imagem. E os quadrinhos têm essa capacidade fascinante de juntar texto com imagem, formar a representação visual.

Toda vez que você pensa em fazer um álbum em quadrinhos, como se dá seu processo de criação do roteiro?
Eu já tinha feio um livro com Angeli e outro com Miguel Paiva. São todos processos diferentes. Com Spacca, a gente sempre parte de livros meus. Dom João Carioca, por exemplo, nasceu de A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis. Digo “parte” porque vem daí o primeiro roteiro básico. Depois, vamos floreando, alterando em função nas necessidades da linguagem dos quadrinhos. O resultado é muito impressionante porque há momentos em que ele coloca dois autores teóricos – Goethe e Levi Strauss – discutindo a monarquia. Por isso eu repito sempre sobre a importância da pesquisa, a seriedade, o comprometimento de uma pessoa como Spacca.

E esse terceiro livro, Triste República, é pautado na sua biografia de Lima Barreto, Triste visionário?
Exato. Pode-se perceber a proximidade dos títulos, inclusive. Conversamos sempre sobre como andar com a história, como ler o livro e puxamos disso o primeiro roteiro. Nós queríamos que Lima Barreto fosse uma espécie de cicerone, de anfitrião, para explicar a Primeira República. Seria um anfitrião muito especial – negro pobre, morador dos subúrbios cariocas e que sofreu muito com o exclusivismo da República, ou seja, acreditou e se decepcionou muito com o que o regime passou a significar para ele.

"Nós queríamos que Lima Barreto fosse uma espécie de cicerone, de anfitrião, para explicar a Primeira República. Negro pobre, morador dos subúrbios cariocas e que sofreu muito com o exclusivismo da República"

Você constrói por uma estrutura convencional de começo, meio e fim ou conta a partir de fragmentos históricos, já que a história é seu fio condutor?
É um projeto todo casado, mas é Spacca quem conduz. Não tem essa divisão tradicional de autor da história e ilustrador. Até porque eu não concordo com o termo ilustrador porque a palavra faz um demérito, né? Como se aquele que desenha corresponde àquilo que o autor previsivelmente quer. O bonito desse nosso processo de produção é que há uma horizontalidade absoluta, não há uma anterioridade. Mas como é que a coisa feita? A gente tem o livro pronto, já publicado, partimos daí e combinamos a estrutura, o papel de Lima Barreto, que eventos precisam contar na história em que ordem.

Você é biógrafa de Lima Barreto e uma especialista em sua obra. Por que escolheu a linguagem dos quadrinhos para levá-lo aos jovens?
Acredito que até hoje Lima Barreto é um autor pouco conhecido. Pouco em relação ao que ele deveria ser conhecido. Este ano, fizemos em parceria com a USP e criamos o site Espalhe Lima, onde, a cada mês, um intelectual negro lê um conto, trecho de romance ou crônica, sempre traduzido para o inglês. O site vai indo muito bem. Aqui nos Estados Unidos, Lima Barreto é pouquíssimo conhecido. Um autor como ele pode ser lido em diferentes perspectivas, como os quadrinhos. Tenho uma espécie de convicção de que autores como Lima, negro, pobre, que morreu aos 41 anos, são fundamentais.

Principalmente um autor com sua qualidade, que desafiou o exclusivismo da República do modo como ele fez...
Eu espero que este álbum, que tem um pouco de biografia e apresenta os romances de Lima, como eu faço na biografia, impulsione a leitura de suas obras nas escolas.

"Ele lutou por nosso direitos civis, por nossa igualdade racial, tema ainda urgente na nossa agenda cidadã e republicana. Não teremos uma verdadeira democracia enquanto formos tão racistas, tão exclusivistas"

No que Lima Barreto continua atual que você procurou destacar no álbum em quadrinhos?
Ele lutou por nosso direitos civis, por nossa igualdade racial, tema ainda urgente na nossa agenda cidadã e republicana. Não teremos uma verdadeira democracia enquanto formos tão racistas, tão exclusivistas. Ele denunciou a imprensa, chamou-a de quarto poder e apontou seus mandantes, o que é muito importante. Era contra os militares entrarem na política – veja que tema mais atual. Ele tinha uma crítica muito forte aos políticos, dizia que muitas vezes estavam lá só para embelezar, adornar o estado. É um autor, enfim, totalmente atual.

Serviço:
Triste República - A Primeira República comentada por Lima Barreto
Spacca e Lilia Moritz Schwarcz
196 páginas
Livro brochura: R$ 89,90
Selo: Quadrinhos na Cia