Um dos nomes mais conhecidos da revista The New Yorker, o jornalista e escritor americano David Grann ficou conhecido no Brasil com dois livros excepcionais. Primeiro, Z – A Cidade Perdida, de 2009, sobre o desaparecimento, em 1925, do explorador britânico Percy Fawcett, na Amazônia brasileira.
O segundo título é Assassinos da Lua das Flores: Petróleo, Morte e a Origem do FBI, de 2018, uma reportagem histórica, inspiração para o cineasta Martin Scorsese.
Agora Grann retorna com outro livro eletrizante. Lançado pela Companhia das Letras, Os náufragos do Wager – Uma história de motim e assassinato traz o relato de um naufrágio ocorrido no século XVIII, cuja origem misteriosa tem ligação com o Brasil.
Tão logo foi lançada nos Estados Unidos, a obra virou fenômeno de público e de crítica. Além de uma história dignas das melhores aventuras, Os náufragos do Wager é também um mergulho profundo nas contradições do comportamento humano, na luta pela sobrevivência, em situações extremas.
Os relatos da época influenciaram os filósofos Jean-Jacques Rousseau, Voltaire e Montesquieu. E, mais tarde, Charles Darwin e dois dos grandes romancistas do mar, Herman Melville e Patrick O’Brian.
"O prêmio de todos os oceanos"
Tudo começou em setembro de 1740, durante um conflito entre Inglaterra e Espanha. Com cerca de 250 oficiais e tripulantes a bordo, o navio militar britânico Wager Portsmouth.
O barco fazia parte de uma esquadra cuja missão era capturar um galeão espanhol repleto de tesouros, conhecido como “o prêmio de todos os oceanos”.
Perto do cabo Horn, na ponta mais austral da América do Sul, a esquadra foi engolfada por ventos fortíssimos. Acreditava-se à época que o navio tenha afundado, com todos os seus tripulantes.
Mas, 283 dias depois de ter sido visto pela última vez, 81 sobreviventes apareceram no litoral gaúcho, na altura do Porto do Rio Grande, a bordo de um barco, construído com os destroços do Wager.
Estavam tão debilitados, que mal conseguiam se mover. Eles haviam enfrentado vendavais, ondas gigantescas ameaçadoras, tempestades de gelo e terremotos.
Quando os poucos remanescentes chegaram ao Brasil, três meses e meio depois, a embarcação improvisada havia percorrido quase 5 mil quilômetros — uma das viagens de náufragos mais longas já registradas.
As autoridades brasileiras os aclamaram por sua engenhosidade e bravura. Como observou o líder do grupo, era difícil acreditar que “a natureza humana pudesse suportar os sofrimentos que suportamos”.
Mais 3 sobreviventes
Outra surpresa viria seis meses depois. Mais três sobreviventes, todos militares, apareceram na costa sudoeste do Chile. Vinham em uma canoa de maneira, cuja vela foi costurada com trapos de cobertores.
O estado do trio era ainda mais assustador: seminus e extremamente magros, deliravam, enquanto insetos cobriam seus corpos e mordiscavam o que lhes restava de carne.
Recuperados, já na Inglaterra, eles denunciaram os companheiros que haviam reaparecido no Brasil: não eram heróis, somente amotinados e, portanto, traidores da pátria. Foi um escândalo.
Cerca de 140 sobreviventes teriam chegado juntos em uma ilha na Patagônia chilena, hoje chamada Wager. Lá, construíram um posto avançado e tentaram recriar ali a hierarquia naval.
Mas, conforme a penúria agravava, o grupo caiu em um estado de depravação, com duas facções em guerra. Saques, deserções e assassinatos... famintos, alguns até sucumbiram ao canibalismo.
De volta à Inglaterra, as principais figuras de cada grupo, junto com seus aliados, foram convocadas pelo Almirantado para encarar a corte marcial.
“O julgamento ameaçou expor a natureza secreta não apenas dos acusados (e de sua tarefa de roubarem um navio espanhol cheio de ouro), mas também de um império cuja autoproclamada missão era disseminar a civilização”, observa o autor.
A partir daí, Grann busca algo próximo da verdade, o que não seria fácil, por causa da guerra de versões.
Na curta apresentação, o escritor mostra ter feito direitinho a lição de casa. Ele poderia ter escolhido uma das histórias para construir sua narrativa. Mas, não tomou o caminho mais fácil.
O sol como testemunha
Grann coloca todas as fontes do naufrágio. Para superar as dificuldades da reconstituição, o escritor passou anos vasculhando os diários de bordo desbotados, a correspondência mofada e os registros que sobreviveram à conturbada corte marcial.
Sobretudo, prossegue ele, estudou os relatos publicados pelos envolvidos. “Tentei reunir todos os fatos para determinar o que realmente aconteceu. Contudo, é impossível escapar das perspectivas conflitantes e às vezes beligerantes dos que participaram dos acontecimentos”, escreve ele.
Em vez de resolver as diferenças ou embaçar ainda mais as provas já embaçadas, diz, buscou apresentar todos os lados e deixou para o leitor o veredicto final.
E é exatamente por isso que a obra se mostra tão instigante, do mesmo modo que fez com Z – A Cidade Perdida. Grann conclui sua história com uma certeza apenas: a única testemunha imparcial foi o Sol.
“Durante dias, ele observou o estranho objeto subindo e descendo no oceano, jogado de maneira impiedosa pelo vento e pelas ondas. Uma ou duas vezes a embarcação quase se chocou contra um recife, o que poderia ter encerrado nossa história. No entanto, de algum modo — fosse por conta do destino, como alguns proclamariam mais tarde, ou por pura sorte —, ele foi parar numa enseada, na costa sudeste do Brasil, onde vários locais o viram”.