A mão de uma pessoa negra, segurando uma colher, desfaz a colheradas uma montanha de açúcar. Entre os grãos finos e brancos, surge a imagem da aquarela "Engenho Manual que Faz Caldo de Cana", em que o artista francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848) retrata pessoas negras escravizadas em fazendas de cana de açúcar.

A cena pode ser vista no vídeo da série "Refino'', do artista Tiago Sant'Ana, presente na mostra "Histórias Brasileiras", em cartaz no Museu de Arte de São Paulo (Masp).

A grande exposição do ano da instituição propõe uma reflexão sobre quais histórias do país precisam ser contadas e revistas neste ano em que se comemora o bicentenário da Independência.

O trabalho de Sant'Ana apresenta uma nova leitura das naturalizadas e tão reproduzidas imagens do artista francês sobre o período colonial brasileiro feitas há 200 anos. Ao escavar a montanha de açúcar com a colher, ele incita uma análise mais profunda sobre o que estava por trás dos ciclos econômicos que se valeram de mão de obra escrava e seus reflexos sentidos até hoje na sociedade.

Esse vídeo de Sant'Ana e algumas gravuras de Debret estão no núcleo "Terra e Território", que levanta questões sobre as diferentes relações com a terra e as disputas presentes desde a invasão portuguesa, em 1500. A exposição está dividida em mais sete núcleos: "Bandeiras e Mapas", "Paisagens e trópicos", "Retomadas", "Retratos", "Rebeliões e revoltas", "Mitos e ritos" e, por fim, "Festas".

"Histórias Brasileiras" tem direção curatorial de Adriano Pedrosa, diretor artístico do Masp, e da historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz. Cada núcleo contou com curadores para refletir sobre os seus temas. Entre profissionais do próprio museu e convidados, a equipe curatorial contou com 11 pessoas.

Para dar conta do Brasil

A exposição é numerosa. Apresenta cerca de 380 trabalhos de aproximadamente 250 artistas e coletivos. Para dar conta das diferentes narrativas sobre o Brasil, o Masp comissionou 24 obras e também emprestou trabalhos de outras instituições como o Museu Nacional de Belas Artes, do Rio de Janeiro.

O núcleo "Bandeiras e Mapas": além do verde e amarelo

Além de peças de artistas consagrados como o holandês Frans Post (1612-1680) e os brasileiros Cândido Portinari (1903-1962), Tarsila do Amaral (1886-1973) e Cildo Meireles, é notável a presença de artistas negros, indígenas, mulheres e LBTQIA+ em todos os núcleos, trazendo uma polifonia de narrativas.

"O Masp propõe um entendimento dessas histórias que não são contadas na narrativa oficial. Principalmente de artistas indígenas e negros que, por conta do racismo estrutural e da própria maneira como a branquitude lida com essa história do Brasil, foram impedidos de produzir de narrativas sobre suas próprias histórias", afirma Isabella Rjeille, curadora da instituição, ao NeoFeed. "Neste ano em que se comemora o bicentenário da Independência, a presença desses artistas é fundamental."

As obras dentro desses núcleos temáticos proporcionam fricções temporais e estéticas entre trabalhos de diferentes momentos do país. Na galeria de "Retratos", a tela "Mulher indígena e Sapatão", de Yacunã Tuxá, traz uma mulher indígena segurando uma bandeira com as cores do arco-íris, símbolo da comunidade LBTQIA+.

Na mesma parede está o autorretrato "Manteau Rouge", em que Tarsila do Amaral se pintou, em 1923, com as cores azul, vermelha e branca da bandeira francesa; e outro autorretrato, desta vez de No Martins, no qual o artista negro aparece sentado em um trono com um cetro na mão – símbolos geralmente relacionados à pinturas de reis e rainhas brancos.

No núcleo organizado por Rjeille, "Terra e Território", é possível ver duas versões sobre exploração de minério de ferro em Minas Gerais. Em 1976, a pintora Djanira (1914-1979) pintou a tela Mina de ferro, Itabira, CVRD, apresentando a mudança das paisagens com a expansão da mineração no estado.

Ao lado da tela, o resultado da ganância das mineradoras está representado em um trabalho bordado coletivamente pelas mulheres do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) sobre o rompimento da barragem de Brumadinho, em 2019, em que se vê bombeiros trabalhando no resgate de vítimas.

Disputa

Outras obras são colocadas por cima deste cartaz, em uma analogia visual à invasão portuguesa das terras brasileiras povoadas pela população originária do país. "É um questionamento da ficção colonial de que o Brasil era uma terra a ser descoberta, como se a natureza aqui não estivesse sendo cultivada", explica Rjeille.

Núcleo Paisagens e Trópicos

"Esse território que reconhecemos como Brasil é recortado por diversas culturas, línguas, religiões, festividades e formas de se relacionar com a terra" destaca a curadora, observando que a convivência entre as diversas narrativas e expressões de existência nem sempre é pacífica e festiva. "É um território em disputa de histórias plurais, atravessadas por violências e apagamentos."

A contenda tão debatida em "Terra e Território" se repetiu na própria organização da mostra. O núcleo "Retomadas" protagonizou uma disputa de espaço institucional. Em maio, o Masp tinha vetado a apresentação de fotos feitas por fotógrafos integrantes do Movimento dos Sem Terra (MST), justificando que as obras tinham sido requisitadas fora do prazo.

O cancelamento de parte dos trabalhos que seriam exibidos no núcleo causou revolta das curadoras de "Retomadas", Clarissa Diniz e Sandra Benites, que manifestaram a indignação publicamente. O artista Cildo Meireles ameaçou retirar seus trabalhos da exposição. E Benites, que era a única curadora de origem indígena da instituição, pediu demissão.

Após negociação com as curadoras, o Masp reviu seu posicionamento, voltou atrás e exibe hoje o núcleo em sua integridade, de acordo com a proposta original. "Retomadas" acabou sendo um exemplo prático de sua própria proposta em debater a reintegração de territórios por parte dos povos indígenas e dos movimentos sociais, que lutam por restituição e reparação de direitos, valores e sentidos. Também é uma alegoria das disputas por narrativas e espaços que são tratadas em tantos trabalhos presentes na exposição.