Aos 30 anos, o suíço Daniel Yule acaba de entrar para a história do esqui alpino. Na corrida inaugural da Copa do Mundo de Slalom, em Chamonix, na França, o jovem ficou em 30º lugar. Por apenas 0,05 segundo, não foi desclassificado.

Pelo regulamento da prova, o último colocado abre a segunda bateria. Em geral, o campeão sai das cinco primeiras colocações da etapa número 1. “Eu estava pronto para voltar para casa”, contaria Yule, mais tarde.

Mas, em um lance jamais visto no esporte, entre uma fase e outra, o atleta conquistou 29 posições e sagrou-se vencedor. Ele foi 0,18 segundo mais rápido do que o francês Clément Noël, primeiro colocado na primeira corrida. Atual campeão olímpico, ficou em terceiro, em Chamonix.

A descida do suíço foi “quase perfeita”, definem os analistas esportistas. Mas é impossível negar: a crise climática ajudou Yule. Naquele domingo, 4 de fevereiro, a temperatura em Chamonix, a mil metros de altitude, era de “escaldantes” 12 graus centígrados. Normalmente, não ultrapassa 3ºC.

Como, na segunda corrida, o suíço foi o primeiro a descer a montanha, a pista ainda estava em boas condições. A partir dali, no entanto, a neve começou a derreter rapidamente, comprometendo o tempo dos próximos esquiadores.

“Quando Clément Noël subiu para disputar a corrida final na primeira posição, sua vantagem de 1,93 segundo sobre Yule derreteu tão rapidamente quanto a camada superior de neve no percurso”, escreve o climatologista Mark Maslin, professor da University College London, na Inglaterra, no post Ski results now being influenced by global warming, em sua página no LinkedIn.

Recentemente, em uma entrevista para o programa Ski Sunday, da rede britânica BBC, o próprio Yule comentara sobre as ameaças impostas ao esporte pelo aquecimento global. Mas ele jamais imaginaria que o calor poderia, um dia, favorecê-lo.

“Pensei: ‘OK, o tempo está quente, você tem a pista perfeita, talvez possamos lutar por um top 10 ou algo assim’, mas nunca sonhei com a vitória”, declarou para o site do Comitê Olímpico Internacional.

36 dias a menos de neve

A neve-lama de Chamonix ilustra à perfeição como as mudanças climáticas estão impactando não só os esportes, mas também o turismo de neve na Europa. Estendendo-se por por oito países, da França à Eslovênia, os Alpes são a maior cordilheira do continente e o destino mais procurado pelos viajantes.

Todos os anos, a região recebe cerca de 120 milhões de pessoas, o equivalente a 40% do total de turistas globais de inverno; seguida pelos Estados Unidos, com 23%.  A indústria alpina de esqui movimenta, no mesmo período, quase US$ 30 bilhões.

Um problema, porém. Entre 1971 e 2019, a cobertura de neve nos Alpes caiu 8,4%, a cada década, estimam os analistas da União Europeia de Geociências.

Com isso, sua duração é hoje 36 dias mais curta do que a média de longo prazo; um declínio “sem precedentes” nos últimos 600 anos, alertam pesquisadores italianos no artigo Recent waning snowpack in the Alps is unprecedented in the last six centuries, publicado na revista especializada Nature Climate Change.

Nem artificial

Quando a neve abundava no Monte Terminillo, a estação era uma das preferidas dos italianos (Foto: Instagram/Monte Terminillo)

A neve começou a diminuir por volta do fim do século 19, mas a situação começou a agravar “nos últimos anos e, ano após ano, especialmente nos dois últimos anos”, como escreve Marco Carrer, professor do departamento de Meio Ambiente, Agricultura e Silvicultura, da Universidade de Pádua, e líder do estudo.

No estudo Climate change exacerbates snow-water-energy challenges for European ski tourism, também editado pela Nature Climate Change, especialistas franceses e austríacos definiram o grau da ameaça no “fornecimento de neve” para as estações de esqui.

Se a temperatura subir 2ºC, 53% das 2.234 mil estâncias estudadas, em 28 países europeus, correm risco grave de padecer com invernos cada vez mais amenos.  Com 4ºC a mais, o índice sobe para 98%.

O britânico Mark Maslin é especialista em clima (Foto: LinkedIn)

Hoje, 90% das pistas italianas dependem de neve artificial. Entre as austríacas, 70% já recorreram à mesma medida. Na Suíça, 50%, e na França, cerca de 40%.

Em muitos casos, por causa das altas temperaturas, nem os canhões dão conta de fazer nevar. As máquinas só funcionam se a temperatura estiver próxima do zero grau.

Prejuízo de meio milhão de dólares

Os grandes prejudicados são os resorts localizados em altitudes mais baixas. Como Monte Terminillo, nos Apeninos, a um hora de Roma. As imagens são desoladoras - canhões abandonados sobre a grama seca e teleféricos fechados.

Sem clientes, a maioria das lojas e bares nem abriu neste inverno. Desde 2022, os centros de esqui italianos vêm registrando queda nas receitas de cerca de 10%, ao ano.

Isso sem contar as estações fechadas permanentemente por causa das alterações climáticas. No ano passado, a prefeitura de Seythenex, perto de Mont Blanc, nos Alpes franceses, responsável pela administração de La Sambuy, decidiu encerrar as atividades da estância.

No inverno de 2023, houve apenas quatro semanas de neve. E, mesmo assim, nevou pouco. O centro operava com um prejuízo estimado de US$ 530 mil anuais. Só os custos de operação dos teleféricos somavam cerca de US$ 85,4 mil.

Em vez de esportes e lazer na neve, La Sambuy oferece agora caminhadas, mergulho em cavernas, parapente, escalada e passeios de bicicleta.

Essa aliás tem sido a estratégias de vários resorts alpinos. Para quem quer esquiar, a única alternativa é subir as montanhas cada vez mais alto.

A importância do "tapete nevado"

A falta de neve nos Alpes não ameaça apenas os esportes de inverno e a indústria do turismo de inverno. A  Europa depende da cordilheira. Cerca de 90% da água usada pelas chamadas “terras baixas europeias” vêm de lá.

A estação francesa La Sambuy fechou definitivamente pela falta de neve (Foto: Instagram/La Sambuy)

Tem mais. As zonas montanhosas com cobertura sazonal de neve são imprescindíveis para alívio do stress climático e preservação da saúde do solo, informa o Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas, da Organização das Nações Unidas (ONU).

Globalmente, a perda de habitats nevados já reduziu a população de vários animais, como rãs, roedores e pequenos carnívoros. O "tapete nevado" ajuda ainda a reduzir as temperaturas locais, pois sua superfície brilhante reflete a luz e o calor do sol.

Se nada for feito para controlar o aquecimento global, em pouco tempo, os Alpes como destino de neve serão apenas sonho de uma noite de inverno