No lugar do zunido de uma bala perdida, a melodia de uma sinfonia. Essa troca — e as oportunidades de vida que ela enseja — vem sendo proporcionada há duas décadas a moradores da comunidade de Heliópolis, em São Paulo, uma das maiores favelas do Brasil. Com um milhão de metros quadrados, tem cerca de 55 mil moradores, segundo censo 2022 do IBGE.
Foi em 2005 que o Instituto Baccarelli de Música fincou raiz no território e passou a fazer com que crianças e adultos tomassem gosto pela música erudita. E agora a ONG está muito perto de entregar a ‘casa própria’ a esses cidadãos: em junho, fica pronto o Teatro Baccarelli, a primeira sala de concerto construída em uma favela no mundo.
“Desde o início o teatro estava em nossos planos. Lá atrás, música clássica era coisa de elite, o que nos fez enfrentar muita resistência. E agora teremos um espaço digno para receber grandes apresentações. E em uma favela”, diz o maestro Edilson Ventureli, CEO do Instituto Baccarelli, em conversa com o NeoFeed.
Ele recorda o depoimento emocionado de uma mãe dizendo o quanto era importante ver Heliópolis frequentar as páginas de cultura em vez do noticiário policial. “Isso muda a autoestima daquelas pessoas”, completa.
A expectativa é de que, após os testes de acústica e os ajustes finais do espaço, a primeira apresentação oficial ocorra em julho. Na verdade, deverá ser organizada uma série de espetáculos para marcar a inauguração da sala de música.
Hoje o instituto atende 1,6 mil pessoas a partir de 2 anos, em mais de 25 turmas de musicalização. São quatro orquestras, incluindo a Sinfônica de Heliópolis, 16 corais, 20 grupos de músicas de câmara. Alguns alunos estão, inclusive, a caminho da profissionalização como musicistas. Para além dos cursos de música, há corais formados por mães e pais. E até pessoas com mais de 70 anos.
“As pessoas mais pobres passam na frente desses espaços imponentes, como teatros e museus, e não entram, porque ficam com a percepção de que aquele local não é para elas”, afirma Ventureli. O Teatro Baccarelli inverte a lógica predominante à medida em que a música passa a ser executada em um lugar que já lhes pertence.
Além de ser o espaço oficial para todos os grupos artísticos do instituto, a casa de espetáculo também deverá ser palco para outras grandes instituições, com a Orquestra Sinfônica de São Paulo (Osesp) e o Balé da Cidade. “Vai ser muito bonito ver esses artistas se apresentando em Heliópolis, e em uma sala de concerto de grande qualidade”, diz o maestro. E haverá espaço mas todos os estilos musicais, como o funk, o rap e o trap.
Para ter uma ideia da grandeza do que está sendo projetado, a responsabilidade pelo projeto acústico, um dos diferenciais quando se fala em uma sala de concerto, é da empresa Acústica & Sônica, o mesmo escritório que projetou a Sala São Paulo, referência internacional em espetáculos de música.
No projeto há detalhes na construção, como ranhuras na parede, que são elementos difusores e ajudam a propagar mais o som. “A grande diferença para um teatro normal é a acústica. O som precisa ter espaço para crescer”, diz o CEO.
Em uma área construída de 4 mil metros quadrados, o teatro terá 540 lugares. Com um pé direito de 13 metros, que garante justamente mais espaço para que música possa seguir seu rumo, o teatro terá também um fosso para as orquestras, em apresentações de grupos de dança.
Apoio público e privado
Dos R$ 42 milhões estimados com o custo total da obra, boa parte foi financiada por meio de incentivo fiscal a partir da Lei Rouanet. O principal apoiador privado é a Fundação Itaú, com R$ 6 milhões. Há recursos também do governo do Estado. Do total autorizado de captação, ainda restam R$ 4 milhões.
Iniciada em 2023, após a contratação por meio de edital, a obra está a cargo da Munte Construtora, responsável pelo projeto de modernização da fachada do Shopping Ibirapuera, um dos mais antigos de São Paulo.
“Para a gente, participar desse projeto vai muito além do que apenas executar uma obra. É algo que ajuda a mudar vidas e tem um impacto enorme na comunidade de Heliópolis”, diz Juliano Salvador, CEO da Munte, em entrevista ao NeoFeed.
Segundo o executivo, o projeto está 63% executado, com a parte física praticamente toda concluída: “Estamos com estrutura e parede prontas, na etapa dos acabamentos, instalações elétricas, hidráulicas e refrigeração”. Logo depois, vem a pintura e a instalação de poltronas e equipamentos. A ideia é entregar a chave com o equipamento pronto para ser ocupado.
Entre os destaques da construção, Salvador destaca o revestimento duplo das paredes, para garantir o isolamento acústico. “Elas são preenchidas com concreto e, ainda com outro revestimento do lado de fora, com lã de rocha e placa de drywall. É quase como uma blindagem.”
Em abril do ano passado, quando a laje onde ficará o palco foi concluída, os músicos fizeram uma apresentação no local. E, durante a obras, os operários tiveram a oportunidade de ver algumas demonstrações, no próprio canteiro, do que a turma fará no teatro com seus instrumentos.
Salvador conta que, no decorrer da obra, alguns desafios foram superados, como a questão logística. “É a nossa obra mais desafiadora. São instalações diferenciadas. E foi difícil para chegar os materiais, por causa da geografia da comunidade, com suas vielas. Mas todo mundo de lá colaborou para que desse certo”, lembra.
O trabalho social do Instituto Baccarelli começou em 1996, quando o maestro Silvio Baccarelli (1931-2019) se sensibilizou com a notícia de um incêndio em Heliópolis. E decidiu, ali, sair da retórica da indignação pela difícil situação daquelas pessoas, para uma ação efetiva. Daí surgiu o projeto social ligado à música.
Naquele momento, porém, as aulas para 30 crianças eram ministradas em um espaço do maestro na Vila Mariana. E, em 2005, o instituto finalmente conseguiu uma área na própria favela, a partir de um comodato assinado com a Prefeitura de São Paulo, garantindo o direito de uso por 20 anos. No ano passado, a administração renovou a liberação, agora por mais 90 anos.
A abertura do pano a partir da primeira apresentação no Teatro Baccarelli será, na avaliação do maestro Ventureli, a materialização de um projeto que envolve muito mais do que ensino de música a alunos de uma comunidade carente.
Como ele diz, “na orquestra, todos precisam tocar juntos, na mesma frequência, para que todo mundo brilhe. É preciso ter solidariedade, um time unido. E isso é o sonho de qualquer gestor de um time corporativo”.