Epicentro da Revolução Francesa, o jardim do Palais Royal, em Paris, é hoje um dos locais preferidos das influenciadoras de moda para selfies. Conectado a esse burburinho, está um restaurante icônico que fica ali desde o século 18, o Le Grand Véfour. Até recentemente, seu estilo correspondia mais ao do Antigo Regime que precedeu a revolta popular, restrito e com uma clientela elitista.
Mas o chef Guy Martin, dono do antigo templo da alta gastronomia, decidiu renunciar às suas estrelas no guia Michelin para democratizar o lugar, que passou a ter preços bem mais acessíveis. Hoje quem passa pelo Palais Royal, vê mesas instaladas em um terraço com vista para o jardim, com clima descontraído como de outros cafés e restaurantes no local. No verão, as filas são mais um indicativo da transformação do lugar.
“Tive três estrelas no guia Michelin, fui chef do ano no guia Gault & Millot em várias publicações, isso é suficiente. Foi como um sonho, tive a oportunidade de ter tudo isso. Foi realmente a vontade de fazer outra coisa e ampliar a clientela do restaurante que me fez mudar”, disse Martin, em entrevista ao NeoFeed.
A virada não para por aí. Ele expandiu seus talentos na "art de vivre" e se lançou no ramo da hotelaria, restaurando antigos palácios italianos, e se prepara para abrir em breve seu terceiro hotel de charme na região da Puglia, o Palazzo Mateo, onde também adquiriu um vinhedo. A primeira safra de seu vinho está sendo elaborada atualmente.
O Le Grand Véfour foi inaugurado com o nome de Café de Chartres e é um verdadeiro monumento gastronômico da França. Após mais de 20 anos com estrelas no guia Michelin, inicialmente três obtidas em 2000 e mantidas durante oito anos, e duas estrelas desde 2008, Martin decidiu abdicar dessa renomada recompensa culinária.
O objetivo, diz o chef, foi “tornar mais fácil o acesso do restaurante a um número maior de pessoas.” Se antes os clientes gastavam, em média, € 350 (cerca de R$ 1,9 mil), hoje existem dois menus, a € 54 (quase R$ 300) e € 63 (R$ 340). Se a opção for apenas um copo de vinho, a refeição com entrada, prato e sobremesa custa em torno de € 70, um quinto do valor.
Por esse preço, é possível almoçar ou jantar em um local tombado pelo patrimônio histórico francês, com decoração de época, que inclui teto e paredes repletos de pinturas e ornamentos com folhas de ouro e ainda, por tabela, se sentar à mesma mesa de antigos clientes ilustres, como Napoleão Bonaparte e Victor Hugo, que costumava ler em voz alta no local trechos de “Os Miseráveis.” Plaquinhas nas poltronas de veludo vermelho indicam o lugar antes ocupado por alguns frequentadores célebres.
Para os saudosistas das estrelas do Le Grand Véfour, o chef manteve algumas de suas grandes especialidades, como o ravióli de foie gras na emulsão de creme com trufas, por € 92 (quase R$ 500). O serviço tem a mesma qualidade da época das estrelas Michelin, e a decoração das mesas, com talheres de prata e cristais, ainda tem o mesmo estilo sofisticado.
Após ter abandonado as duas estrelas Michelin em 2021 e decidir abrir o terraço externo, o número de clientes por serviço passou de 40 para 100. O chef diz que é cedo para avaliar a performance econômica da mudança, ainda mais que a atividade sofreu o impacto neste ano da greve dos lixeiros e das quebradeiras em Paris contra a reforma da aposentadoria.
Com os novos projetos, o chef realiza outros desejos. Um deles é o vinhedo que adquiriu, “algo que representa um sonho para qualquer cozinheiro porque o vinho é o complemento de uma refeição”, afirma.
Apaixonado por pintura e fotografia, ele renovou antigos palácios na pequena cidade barroca de Nardò e os decorou com móveis de design dos anos 1950 e 1960 e objetos de arte. Seus dois primeiros hotéis boutique, Palazzo Maritati e Plazzo Muci, têm apenas seis e quatro quartos. O terceiro, que deve ser inaugurado até setembro, tem mil metros quadrados e seis suítes. As diárias se situam entre € 150 e € 600.
Ele optou por não ter restaurantes em seus hotéis na Itália. “A cozinha da Puglia é fantástica, com produtos de grande qualidade. Não vou fazer comida francesa ali”, ressalta.
Para ele, as estrelas no Michelin ficaram definitivamente para trás. Martin diz que não há o risco de o Le Grand Véfour voltar a receber essa distinção gastronômica, como já ocorreu em situações do mesmo tipo. “Já avisei o guia que agora somos um café-restaurante”, ressalta.
Sem o peso das estrelas
Símbolo de consagração suprema para alguns, fruto de muita dedicação e também suor e lágrimas, mas, para outros, uma pressão permanente e um peso ao longo do tempo: as estrelas do guia Michelin de gastronomia já não atraem mais tantos chefs como antes, entre os que já a conquistaram e acabam abandonando a distinção e os que nem pretendem cobiçá-la.
Outros chefs renomados têm tomado o mesmo caminho de Guy Martin e abdicado da premiação do guia Michelin, como Gilles Tournandre, do restaurante Gill, em Rouen, na Normandia.
Após 36 anos com duas estrelas no guia Michelin, ele também decidiu abandoná-las para tornar seu restaurante mais acessível ao público em geral e “acabar com o stress contínuo” para mantê-las. Desde então, ele abriu ainda uma doceria.
Alguns nem pretendem cobiçar a prestigiosa recompensa do guia Michelin, como disse ao NeoFeed Pierrick Cizeron, chef executivo desde 2018 dos hotéis Barrière em Cannes, no sul da França. Cizeron, com um percurso profissional de mais de 20 anos, boa parte deles em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, diz ter grande respeito pelos que obtiveram a distinção, mas afirma ter preferido optar por uma cozinha regional e da estação.
As vendas do guia vermelho, como é chamada a publicação da Michelin na área de gastronomia, despencaram 62% nos últimos dez anos. Atualmente são vendidos por ano pouco mais de 30 mil exemplares.
Mesmo que o guia tenha recuperado seu nível de vendas antes da pandemia de Covid-19, há uma queda considerável nas vendas na última década. Não à toda, a Michelin está em busca de novos mercados como Dubai, por exemplo.
Para muitos chefs, as estrelas do guia, apesar do stress para ganhá-las e mantê-las, é um reconhecimento que permite atrair sempre clientes.
A chef Helène Darroze, que coleciona seis estrelas no Michelin – três com o restaurante londrino The Connaught, duas no parisiense Marsan e uma no Villa La Costa, na Provença – optou por democratizar o acesso à gastronomia de outra maneira. Neste ano, ela abriu em Paris uma hamburgueria, a Jóia Bun (em referência ao seu bistrô Joia, nas proximidades).
Os fornecedores de carne exclusivamente francesa e queijo são os mesmos de seus outros restaurantes. O pão é preparado diariamente e durante o inverno os sanduíches não têm tomate por ser fora de época. Os hambúrgueres custam entre € 14,50 e € 25 (R$ 78 e R$ 135). As batatas fritas com alecrim e queijo de cabra basco saem por € 6 (R$ 32).
É certo que a notoriedade por conta das estrelas no Michelin permite aos chefs ampliarem o público, inclusive no segmento de fast food como a chef Darroze. E muitos continuam batalhando por elas. Outros, como o chef do Le Grand Véfour, contudo, depois que conquistá-las, preferem "sonhar outros sonhos".