Na última edição da SP-Arte, um estande repleto de arte popular do Vale do Jequitinhonha chamava atenção de quem visitava a feira. A seleção de peças dos artistas Ulisses Pereira Chaves (1924-2007), Isabel Mendes da Cunha (1924-2014), Noemisa Batista dos Santos e Rosana Pereira foi feita pelo pesquisador e curador Renan Quevedo, do Projeto "Novos Para Nós", idealizado por ele em 2017 com objetivo de dar mais visibilidade a artistas populares. Quase todas as obras apresentadas foram vendidas.

Neste ano, a Fenearte, uma das principais feiras de artesanato e arte popular do Brasil, que acontece em Pernambuco, atraiu 5 mil expositores, mais de 300 mil visitantes e movimentou um valor superior a R$ 40 milhões. "Há 10 anos, pesquiso arte popular e observei essa expressão ganhando reconhecimento dentro e fora do Brasil", afirma Quevedo em entrevista ao NeoFeed. "Nos últimos cinco anos, eu vi diversas lojas de arte popular brotarem e também há um movimento dos museus de trazer a expressão popular para suas exposições e acervos."

O pesquisador ressalta a importância de mostras recentes que aconteceram no Museu de Arte de São Paulo que aproximaram artistas já consagrados como Alfredo Volpi (1896-1988) e Tarsila do Amaral (1886-1973) da expressão popular - respectivamente as exposições "Volpi Popular", neste ano, e "Tarsila Popular", em 2019.

"É um movimento de reparação histórica. A arte popular sempre foi levada ou consumida por uma elite que olhava aquilo como um investimento ou uma coisa excêntrica e exótica", afirma. "Durante muitos anos, chamavam arte popular de naïf. Mas ingênuo ou inocente é definitivamente tudo que ela não é. O trabalho dos artistas populares é fruto de uma série de contestações, está cheio de significados. É a busca por uma identidade."

A chegada do trabalho do pesquisador à SP-Arte coroa também esse novo momento da expressão. A produção dos artistas populares deixa de ser um objeto que, segundo o pesquisador, as pessoas usavam para enfeitar a cozinha ou a casa de campo e passa a ser visto como um orgulho por colecionadores, que colocam agora as obras no centro de suas salas.

Exposição dos artistas do Vale do Jequitinhonha na SP-Arte

Onde tudo começou

Em 2012, Quevedo visitou a exposição "Teimosia da Imaginação", no Instituto Tomie Ohtake, sobre arte popular. Ficou encantado com o que viu e, ao mesmo tempo, espantado. "Naquele momento, eu não saberia dizer um nome de um artista popular brasileiro. E acho que isso diz muito sobre a nossa formação. A gente olha sempre para o que aconteceu na Europa, na América do Norte, mas não conhece a história da arte brasileira e menos ainda a da arte popular brasileira", conta.

A fim de conhecer os trabalhos dos artistas, Quevedo passou a utilizar o tempo que tinha livre para conhecer artistas populares de diversas regiões do país. Em 2017, resolveu transformar o hobby em projeto de vida. Pegou um carro e passou seis meses na estrada pesquisando artistas populares, que já produzem há muito tempo, mas que as pessoas dos grandes polos urbanos desconhecem. Chamou o projeto de "Novos para nós", como uma provocação. "Eu me propus a fazer uma única coisa: contar pelo menos a história de um artista por dia", explica.

Em 200 dias de viagem, Quevedo publicou nas redes sociais e no site do projeto mais de 300 histórias. Para encontrar esses artistas, ele seguia o seu faro. "Parava no posto de gasolina, na feira, no mercado e perguntava: 'você conhece alguém que faz algum tipo de escultura, bordado?'", lembra. Assim, ia mapeando os artistas, que já passaram dos 400 nomes pesquisados.

Entre eles, está o carioca Marcelo Teixeira da Conceição. O artista cria peças que aludem aos objetos cinéticos de Abraham Palatnik (1928-2020). Com materiais que encontra nas ruas da cidade, como varetas, botões e pedaços de madeira, ele cria objetos arquitetônicos que lembram edifícios, capelas e monumentos. Em setembro, Quevedo assinou a curadoria da primeira exposição individual do artista, "Planetas", no espaço A Estufa, em São Paulo.

Um novo mercado

A proliferação do coronavírus, em 2020, fechou museus, galerias, lojas e parou com o movimento do turismo. Um apelo dos artistas populares chegou até Quevedo. "Comecei a receber ligações de artistas desesperados, porque os turistas pararam de passar e eles não sabiam como comercializar o trabalho sem aquele fluxo", conta.

Marcelo Teixeira da Conceição: peças que aludem aos objetos cinéticos de Abraham Palatnik

O pesquisador já tinha trocado algumas ideias com alguns artistas sobre os benefícios que teriam se criassem perfis nas redes sociais, pois assim poderiam comercializar seus trabalhos de forma independente. Visto que a demanda era urgente e Quevedo já contava com uma audiência interessada em arte popular, montou um e-commerce no site do Novos para nós, para ajudar a vender os trabalhos. Pela loja online, vendeu trabalhos de mais de 250 artistas com peças que chegam até R$ 3,5 mil.

"O melhor feedback que recebi foi ouvir deles um agradecimento, pedindo para tirar os trabalhos da loja e dar espaço para outros artistas, pois já tinha conseguido se restabelecer", conta.

O pesquisador nunca havia pensado em entrar no mercado de arte. A comercialização aconteceu por uma demanda dos próprios artistas que viram nele uma pessoa em que poderiam confiar. "É um mercado que acaba esmagando muito o artista nessa possível oferta de um desconto ou de uma pechincha", afirma.

"Os artistas populares estão distantes, num primeiro momento, de um treinamento formal do mundo das artes. "Para tentar mudar algo nessa roda, Quevedo atua diretamente com o artista, ajudando-o a precificar o trabalho.

Noemisa Batista dos Santos, artista que criou parte das obras exibidas na SP-Arte

Um exemplo é o caso de Jasson Gonçalves, que estava cogitando parar de fazer suas cadeiras coloridas por não receber grande retorno financeiro. Gonçalves, conhecido também como seu Jasson, vive em Belo Monte, interior de Alagoas. Aproveitando troncos de madeira que encontra, constrói cadeiras coloridas adornadas com figuras de influências religiosas e folclóricas, que lembram tronos.

Quando Renan foi visitá-lo, a esposa de Gonçalves o abordou dizendo: "A gente está passando fome e eu marido está pintando pau de cor de rosa". Quevedo sentou com o artista e perguntou quanto ele cobraria por uma de suas cadeiras. O pesquisador fez uma conta e sugeriu pagar três vezes mais pelo trabalho. Além disso, divulgou o trabalho de Gonçalves em suas redes.

Certo dia, Jasson ligou para Quevedo contando que estava cheio de encomendas e sem tempo para produzir. "Eu acho que chegou a hora de o senhor aumentar o preço um pouco mais", sugeriu. "Sozinho, ele multiplicou por muitas outras vezes e hoje vive de sua própria arte."

O acordo transparente também foi feito com as artistas vivas, que produziram os trabalhos que o pesquisador levou para a SP-Arte. Ele conversou com Noemisa e Rosana sobre o preço pelo qual as obras deveriam ser comercializadas na feira e com quanto de lucro elas gostariam de ficar. "O artista tem de estar confortável com o preço que está sendo vendido e quem compra precisa ter o entendimento que aquilo fala sobre a nossa história e sobre o símbolo de identidade do povo brasileiro", conclui.