Sessenta anos depois da Beatlemania, o “fim” dos Beatles continua sendo um negócio em aberto e ainda bastante lucrativo. Em 1996, quando Anthology 3 chegou às lojas, o fim soava definitivo: aquela trilogia de discos de arquivo, acompanhada por livro, série documental para TV e dois singles inéditos, seria o último grande gesto oficial da banda.
O relançamento de The Beatles Anthology em 2025 repete o truque, mas agora em escala industrial e digital. O projeto que, nos anos 1990, foi vendido como o capítulo final da história do grupo retorna em múltiplas frentes: uma nova edição do livro, uma série restaurada que estreia no Disney+ com um nono episódio inédito e uma coleção reorganizada de álbuns, a Anthology Collection, com direito a um quarto volume, Anthology 4.
O pacote fecha com Now and Then, o single de 2023 finalizado com ajuda de ferramentas de “desmixagem” e vendido como “a última música dos Beatles”. A promessa de “última vez” é, de novo, um dispositivo comercial.
A nova faixa de entrada são justamente as imagens de bastidor de 1994 e 1995, quando Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr se reencontraram para transformar demos caseiras de John Lennon em Free As A Bird e Real Love. A série mostra McCartney tentando “reacender a magia” do grupo, enquanto Harrison insiste que os Beatles “vão continuar” por meio dos discos e filmes, não como um trio sem Lennon.
O material é feito para fãs nostálgicos, mas também chega aos demais via playlists ou recomendações algorítmicas. Para esses ouvintes, a Anthology 2025 funciona como uma curadoria de entrada: uma seleção de sobras, raridades e versões alternativas que, paradoxalmente, foi pensada para fãs que achavam que já tinham ouvido tudo.
A tecnologia de áudio – da remasterização de arquivo à inteligência usada para isolar a voz de Lennon – ajuda a transformar fitas antigas em “novidades” capazes de disputar espaço na economia da atenção ao lado de artistas contemporâneos.
O nono episódio expande a narrativa de reconciliação e de trabalho coletivo, mas deixa à mostra as fricções por trás do projeto: a escolha de Jeff Lynne, do Electric Light Orchestra, como produtor dos singles, bancada por Harrison; as reservas do guitarrista quanto a transformar Now and Then em música dos Beatles; e o contexto financeiro de Harrison à época, pressionado pelo risco de quebra da sua produtora HandMade Films.
A reunião não era só um gesto afetivo entre ex-colegas de banda, mas também uma solução prática para problemas de caixa e uma forma de converter demos deixadas por Lennon em novos ativos.
Nos créditos do novo episódio, McCartney e Starr aparecem como coprodutores, lado a lado, seguidos por Olivia Harrison, viúva de George, e por Sean Ono Lennon, filho de John e Yoko Ono. Foi Yoko quem, lá atrás, cedeu as fitas com as demos de Lennon – e o próprio McCartney, no documentário, comenta que isso veio acompanhado de condições que a Apple Corps precisou negociar.
O relançamento da Anthology é, portanto, o resultado de uma aliança delicada entre os dois Beatles remanescentes e os herdeiros dos dois que se foram, cada qual com seus interesses artísticos, afetivos e patrimoniais.
A indústria oficial dos Beatles trabalha para reposicionar a história do quarteto como uma narrativa de encontros, criatividade e superação, suavizando a sombra da ruptura e das tragédias pessoais – o assassinato de Lennon, a morte precoce de Harrison, a luta de Ringo contra álcool e drogas, o luto de McCartney após a perda de Linda.
Do lado de fora dos estúdios, o mercado de direitos autorais já vinha sinalizando o apetite por esse tipo de ativo. Em 2023, as ações da Round Hill Music Royalty Fund, dona de um portfólio com mais de 150 mil músicas – entre elas She Loves You, dos Beatles – dispararam mais de 60% na Bolsa de Londres após uma oferta de compra pela Alchemy Copyrights. Foi um lembrete de que catálogos com repertório de apelo intergeracional são vistos como fontes de fluxo de caixa previsível, passíveis de securitização e recompra.
No caso específico dos Beatles, a trajetória dos direitos é quase um estudo de caso em finanças da música. Em 1985, Michael Jackson comprou o catálogo controlado pela ATV, que incluía as composições de Lennon e McCartney, por US$ 47,5 milhões, em um negócio que acentuou o ressentimento de Paul em relação à venda da Northern Songs em 1969.
Décadas depois, o espólio de Jackson vendeu sua participação para a Sony por cerca de US$ 750 milhões. Em 2017, McCartney foi à Justiça nos EUA para recuperar os direitos de parte dessas canções e acabou firmando um acordo confidencial com a gravadora.
Entre um ponto e outro, o valor implícito do catálogo se multiplicou muitas vezes – e cada nova onda de atenção, como o relançamento da Anthology, ajuda a justificar projeções ainda mais ambiciosas.
A Apple Corps opera como a engrenagem que conecta essa engenharia jurídica e financeira ao entretenimento. No site oficial, a nova Anthology aparece como um ecossistema fechado: a série no Disney+, a coleção de discos, a reedição luxuosa do livro, camisetas, moletons, pôsteres, slipmats para toca-discos, bolsas e toda sorte de memorabilia ligada às capas e às imagens de bastidor.
Do ponto de vista da Apple, das famílias e dos eventuais fundos de investimento interessados, o objetivo é claro: um ciclo de produtos que se alimentam mutuamente. O que mostra que a “Beatles Mania” segue sendo altamente lucrativa.