LOCARNO — Aos 76 anos, Ben Burtt é uma lenda em Hollywood, ainda que seu nome e rosto sejam desconhecidos do público. “O meu trabalho é feito no porão, onde ninguém me vê”, costuma brincar o designer de som responsável por efeitos sonoros que impactaram profundamente a indústria do cinema. Como o zunido dos sabres de luz, a respiração de Darth Vader e a voz de R2-D2, de Star Wars (1977), além da fala do protagonista de E.T. – O Extraterrestre (1982).
“A voz de R2-D2, expressada por bipes, foi o trabalho mais difícil dentro da saga de George Lucas porque não havia algo precedente no legado de som no cinema. Nenhum robô até então tinha ganhado uma linguagem artificial própria”, conta Burtt, lembrando que este foi o último som aprovado por Lucas e adicionado ao filme, na pós-produção, por ter exigido mais criatividade.
Para a sorte do designer, naquele momento já estavam disponíveis no mercado os primeiros sintetizadores, como o ARP 2600, lançado em 1971. “Como nós queríamos que os sons sintéticos emitidos por R2-D2 tivessem personalidade, a ideia foi combiná-los com uma performance vocal, sons que eu criei como se fosse o robô se expressando”, diz o designer.
Burtt chegou ao resultado almejado (“ruídos eletrônicos que pudessem transmitir certa sensibilidade e até humanidade”), ao conectar um microfone a um sintetizador modular. Isso permitiu que ele usasse a sua voz para controlar o instrumento — no lugar do teclado, por exemplo. “Foi assim que um personagem com aparência de lata de lixo e com uma cabeça giratória ganhou a simpatia da plateia, mesmo sem ter boca e não se comunicar com palavras”, conta, rindo.
Essa e outras histórias foram relembradas na recém-encerrada 77ª edição do Festival de Cinema de Locarno, que teve cobertura do NeoFeed. No evento sediado na Suíça italiana, Burtt foi homenageado por sua contribuição artística com o prêmio Vision, entregue anualmente a profissionais que expandiram os horizontes do cinema.
“A intenção por trás de Star Wars era fazer uma produção de ficção científica que atraísse os fãs de Planeta dos Macacos (1968), por exemplo. Ninguém imaginava que continuaríamos falando do filme 47 anos depois. Se alguém me dissesse isso, eu levaria como uma piada. E George Lucas também”, contou o designer.
Indicado 12 vezes ao Oscar de melhor som e vencedor de quatro estatuetas na categoria (sendo uma delas por Star Wars), Burtt ministrou em Locarno uma Masterclass. Assim são chamadas as aulas de cinema de atores, diretores e outros membros da equipe técnica em festivais, em que eles contam detalhes do trabalho e dos bastidores de seus filmes.
“Ben Burtt é uma parte fundamental da mitologia de Star Wars. Um jovem prodígio dos efeitos sonoros na época, ele criou uma biblioteca de sons orgânicos para dar vida ao universo do filme”, afirmou Giona A. Nazzaro, a diretora artística de Locarno, ao justificar o prêmio ao designer. “Trata-se de um pioneiro e visionário que mudou fundamentalmente a maneira como percebemos o som no cinema.”
"Vou pagar com cartão de crédito"
Em Star Wars, Burtt também revolucionou o setor ao criar o som emitido pelos sabres de luz e pelas armas chamadas blaster, que disparam feixes de energia. Para o ruído dos tiros, o designer gravou o som que ele mesmo produziu ao dar golpes de martelo em fios de torre de rádio. “O som acabou se tornando a base para as armas a laser que vieram depois”, comentou Burtt.
Para o zunido do sabre de luz, ele usou equipamentos como projetores de cinema e uma televisão. Como ele trabalhava em sala de cinema na época, ele recorreu ao zumbido que ouvia todos os dias ao ligar os projetores e sincronizá-los com outras máquinas. E para deixar o som mais amedrontador, ele incorporou o barulho que, às vezes, a TV de sua casa fazia, um ruído típico de tubos de raios catódicos, usados nos monitores mais antigos.
Para Darth Vader, descrito no roteiro como um personagem que precisava de uma máscara para respirar, foram muitas tentativas para encontrar uma marca acústica apropriada. “Até eu procurar uma escola de mergulho e fazer algumas aulas. Daí percebi que a solução seria gravar a minha respiração com um regulador de mergulho”, recordou o designer.
O fascínio de Burtt por sons nasceu na infância, quando o seu pai lhe deu um gravador.
“Aos seis anos, quando fiquei doente e precisei passar semanas na cama, eu me distraía gravando tudo o que estava ao meu redor. Incluindo os filmes da televisão, o que me fez me apaixonar pelo som do cinema”, lembrou o designer, que mais tarde estudaria produção de cinema na Universidade do Sul da Califórnia, a mesma frequentada por George Lucas.
“Eu poderia ter recorrido à biblioteca de sons, um departamento que todo estúdio de cinema tinha quando ingressei nessa profissão. Mas para os trabalhos que fiz, tanto para George Lucas quanto para Steven Spielberg, eu queria ir mais longe, fazendo combinações inesperadas de sons, para ampliar o impacto os efeitos sonoros, aproveitando que a tecnologia avançava”, comentou Burtt.
Além de Star Wars, ele também foi premiado com um Oscar pelas inovações de som feitas em Os Caçadores da Arca Perdida (1981), Indiana Jones e a Última Cruzada (1989) e E.T. – O Extraterrestre.
“No caso de E.T., eu procurava uma voz neutra, que não identificasse o gênero ou a idade da pessoa. E, ao entrar em uma loja de câmeras fotográficas, ouvi alguém muito rouco dizendo: ‘Vou pagar com cartão de crédito’. E naquele momento sabia que tinha encontrado ET”, contou o designer, referindo-se a atriz Pat Welsh, que tinha aquela voz distinta por fumar demais. Pat morreu, vítima de pneumonia, em 1995.