Marrakech — O heavy metal na trilha sonora de Mother já anuncia não se tratar de uma cinebiografia tradicional de Madre Teresa de Calcutá (1910-1997). Sim, uma das cenas traz a freira, aos 38 anos, balançando a cabeça violentamente para frente e para trás no ritmo da faixa Hard Rock Hallelujah, da banda de rock finlandesa Lordi.

A escolha musical é justificada pela abordagem do filme, uma das atrações da 22ª edição do Festival Internacional de Cinema de Marrakech (FIFM, na sigla em francês), a ser encerrada no sábado, 6 de dezembro, no Marrocos. O foco não cai sobre a religiosa que conhecemos: a ganhadora do Prêmio Nobel da Paz, em 1979, beatificada pelo papa João Paulo II, em 2003, e santificada por Francisco, 13 anos depois.

O que o novo longa-metragem propõe é uma versão hard rock da madre, por resgatar o espírito livre da época em que ela lutava para driblar o Vaticano. Havia ainda muita determinação e rebeldia no modo como ela desafiava a noção de autoridade, a hierarquia da Igreja Católica e a dominação masculina no meio religioso. Tudo em nome de um sonho: iniciar uma missão própria, ajudando os pobres nas ruas.

A madre também tinha seus tormentos e vícios, nem sempre se mostrando a alma compreensiva e caridosa com a qual seria associada mais tarde. Aqui ela revela uma faceta mais cruel ao descobrir que uma freira do seu convento está grávida.

Em outro momento, a religiosa até admite ao seu superior que talvez todas as suas boas ações sejam fruto da sua vaidade, por gostar da ideia de ser vista como uma santa.

“É a história da mulher por trás do mito”, conta a atriz sueca Noomi Rapace, que encarna perfeitamente essa fase mais conturbada de Madre Teresa.

Até porque ela ficou conhecida pelo papel da hacker bissexual com piercings no nariz, maquiagem pesada e enorme tatuagem de dragão nas costas da trilogia iniciada com Os Homens que Não Amavam as Mulheres (2009).

Ainda sem data de estreia no Brasil, Mother cobre apenas uma semana na vida da protagonista, quando ela dirigia o Convento de Loreto, em Calcutá. O período diz respeito aos sete dias que antecederam a chegada de uma carta, após uma espera de dois anos, com a decisão final do Vaticano sobre um pedido da religiosa.

A correspondência marca a permissão do Papa Pio XII para que ela deixe o posto de Madre Superiora do convento, para fazer o que realmente quer. Ou seja, abandonar o conforto e fundar as Missionárias da Caridade, passando a viver na periferia e a trabalhar diretamente com os mais necessitados nas ruas tomadas pela fome, miséria e doenças, algo que a maioria dos religiosos não ousava fazer.

“Para a preparação, comecei a ler muitos livros. Tanto os positivos e elogiosos quanto os mais negativos, com críticas”, conta Rapace, em encontro com o público no festival de Marrakech, acompanhado pelo NeoFeed. “Mas o que mais me ajudou foi me deparar com suas cartas, suas próprias palavras”, completa a atriz, de 45 anos.

Madre Teresa nem sempre foi aquele “raio de sol”, como destaca Rapace. Ao longo da vida, a religiosa, de fato, recebeu várias críticas. Para alguns, por trás da sua ajuda aos pobres, havia sempre uma intenção de convertê-los ao cristianismo.

Ela ainda foi questionada pela falta de transparência financeira na sua organização, além de ser acusada de glorificar a pobreza e o sofrimento e de fazer forte oposição aos métodos contraceptivos e ao aborto, ignorando a realidade vivida por muitas mulheres, especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade.

Uma das críticas a Madre Teresa era a falta de transparência financeira à frente da ordem Missionárias da Caridade (Foto: commons.wikimedia.org)

Em suas pesquisas sobre a santa, Rapace descobriu "uma mulher com muita dor, muitas lutas e muitos medos" (Foto: Rabi.Loukili/FIFM 2025)

Da mesma cidade natal da freira, a cineasta Teona Strugar Mitevska dirigiu em 2015 um documentário sobre Madre Teresa (Foto: Ivan Blazhev)

“Descobri uma mulher com muita dor, muitas lutas e muitos medos. Ela trazia ainda muita escuridão e ansiedade na sua alma. E foi aí que eu realmente comecei a entendê-la e a vê-la como pessoa”, conta Rapace, lembrando que o filme é baseado em 15 anos de pesquisa da roteirista e diretora responsável pela cinebiografia, Teona Strugar Mitevska.

Radicada atualmente na Bélgica, a cineasta nasceu em Escópia, na Macedônia do Norte. A cidade é também a terra natal da religiosa, embora estivesse sob o domínio do Império Otomano, em 1910, ano de nascimento da madre.

Por sua ligação com Escópia, uma emissora de TV da Macedônia contratou Mitevska para a realização de uma minissérie documental sobre Madre Teresa, intitulada Teresa and I (2015). Durante esta pesquisa, a diretora teve acesso aos diários pessoais da religiosa, descobrindo as suas inquietações mais profundas, material que é usado tanto no documentário quanto na obra de ficção.

“Como Teona conversou com freiras que trabalharam com Madre Teresa, as poucas que ainda estão vivas, o filme é baseado nas histórias que ela ouviu”, comenta a atriz, lembrando que os depoimentos determinaram a imagem de empoderamento feminino, como mostra o filme.

“Além de ser audaciosa e corajosa, Madre Teresa era dura com todos e, principalmente, consigo mesma. Era uma espécie de general de um exército de mulheres”, acrescenta Rapace, que escolheu um vestido de couro preto para a première no Marrocos.

Até o traje da atriz evocava o rock pesado, que embala surpreendentemente tão bem algumas cenas de Mother. A trilha sonora do filme, no entanto, também inclui faixas instrumentais e cânticos religiosos, como esperado.

O heavy metal é o destaque de uma cena noturna, em que Madre Teresa prepara a massa de pão na cozinha. De repente, ela tem uma alucinação, com um garoto soprando farinha em seu rosto. É o que desencadeia um transe na religiosa, como quem precisa desesperadamente exorcizar os seus demônios.

E nada melhor do que dançar ao som de guitarras estridentes, acompanhada das outras freiras, que parecem também não conseguir resistir à tentação da “música do diabo”.