Mateus Solano sobe ao palco sozinho. Seu personagem, Augusto, é um figurante — um dos muitos rostos que preenchem a cena sem que jamais sejam notados. Eles cruzam ruas, aguardam elevadores, dançam em festas onde ninguém os chama pelo nome... ainda que façam o mundo dos protagonistas parecer real.
Mas, desta vez, é diferente. Em O Figurante, em cartaz no Teatro Renaissance, em São Paulo, Solano coloca esses anônimos no centro da história. "Nunca fui figurante, mas sempre tive muito carinho pela figuração. Tanto que o personagem Augusto tem esse nome em homenagem a um grande figurante que nos deixou no ano passado, o Augusto Mucke," diz o ator, em entrevista ao NeoFeed.
Em um palco minimalista, onde cortinas cinzas se confundem com o figurino do ator, Solano explora ao máximo os recursos que tem à disposição: o corpo e a multiplicidade de sua voz, preenchendo o espaço cênico com precisão.
A peça dá continuidade à pesquisa de linguagem que Solano e Miguel Thiré, diretor do espetáculo, desenvolvem há anos. Para Thiré, trata-se de uma encenação essencial, ancorada no corpo e na voz como os verdadeiros pilares do jogo cênico.
O Figurante discute o conceito de invisibilidade e protagonismo. Questiona quem realmente ocupa o centro das atenções nas narrativas que consumimos — e o que perdemos ao não olhar para os que permanecem nas bordas.
Todos os dias, Augusto repete a mesma rotina. Acorda, toma banho, escova os dentes, toma café. Não diz uma palavra. Na mímica, Solano encontra um campo vasto para explorar o movimento, os gestos e a expressão exata que arranca risos da plateia.
Depois, abre a agenda e vê qual personagem será o seu naquele dia. Para Augusto, qualquer figura anônima pode ser o papel da sua vida. Antes de seguir para o set, ele ensaia. Imagina o passado do personagem, seus movimentos, o tom de sua voz. Dá a ele forma, gestos, e vida, como se fosse o protagonista de uma história imensa.
Mas quando chega a hora de brilhar, de se revelar no palco, ele é silenciado. O diretor, o fiscal da figuração, o contrarregra — todos o apagam. Augusto não fala, é colocado no seu lugar, e é instruído a fazer apenas o que foi pedido: caminhar, dançar, ficar parado em frente ao portão; sem espaço para a própria expressão.
No silêncio de Augusto, Solano empresta sua voz, sempre por meio de gravações, para personagens que normalmente circulam pelo set: diretores, produtores, câmeras e, claro, atores. Elas têm voz, sem jamais aparecer.
"Todas essas necessidades e recursos surgiram no processo de construção da peça. Ao focarmos naquele que nunca é visto, pareceu interessante ouvir, mas não ver aqueles que, num set, são protagonistas," explica o ator.
"Garimpo do inconsciente"
Pela primeira vez em 22 anos de carreira, Solano está sozinho no palco. "Tem sido fundamental para meu amadurecimento como ator e como pessoa. Não tenho para onde fugir — de mim mesmo, dos meus medos, das minhas dificuldades”, diz ele. “É um trabalho que me desafia e me transforma."
No projeto, o ator vai além da interpretação: é um dos autores do texto. A dramaturgia nasceu do método Escrita na Cena, desenvolvido por Isabel Teixeira, que estimulou Solano a explorar sua própria criatividade por meio de exercícios de improvisação. Recentemente, os dois atuaram juntos na novela Elas por Elas, da Globo, onde viveram o casal Jonas e Helena.
Este processo criativo, registrado e reelaborado, resultou no que Solano descreve como um "garimpo do inconsciente". As cenas improvisadas por ele foram transcritas e trabalhadas por Isabel, mantendo a autenticidade das reflexões do ator sobre o personagem.
"O argumento de O Figurante já existia na minha cabeça há mais de dez anos, mas só tomou forma nesse processo tão rico. E arrisco dizer: ainda está em construção. A peça continua ‘falando comigo’, porque foi garimpada do meu inconsciente. Ela ainda tem muito a me ensinar", reflete Solano.
Foi em um dos momentos de maior sucesso de sua carreira que Solano se sentiu figurante de sua própria vida. Em 2013, ele vivia o vilão Félix na novela Amor à Vida, de Walcyr Carrasco, no horário nobre da TV Globo.
O personagem conquistou o público, que clamou por sua redenção. Ao lado de Thiago Fragoso, seu par romântico na trama, protagonizou o primeiro beijo gay de um casal masculino na TV aberta brasileira. Esse marco na história da televisão trouxe a ele uma visibilidade que, à primeira vista, parecia ser um triunfo.
Figurante da própria vida
O sucesso de Félix foi tanto que, para Solano, as pessoas o cumprimentavam ou pediam fotos porque gostavam do personagem.
"Quando fiquei famoso, passei a lidar com máscaras que os outros colocavam sobre mim, revestidas de carinho, mas também de expectativas", conta o ator. "Me tornei um personagem de mim mesmo, mais identificado com quem eu interpretava do que com quem sou de verdade. Foi nesse sentido que me senti figurante da minha própria vida."
A reflexão de Solano aqui não diz respeito apenas à fama, mas à experiência humana de sermos definidos pelos outros, pela imagem que eles projetam sobre nós.
Para o ator, a experiência pessoal mostrou que essa sensação de ser figurante da própria história vai além da profissão ou da posição de aparente protagonismo.
"Hoje, mesmo quando todos se consideram protagonistas de suas redes sociais, estamos nos enganando. O que realmente buscamos é a aprovação do outro, seja por um like, seja por um compartilhamento," resume, apontando para uma das grandes questões do nosso tempo: a busca incessante por reconhecimento.
Em 70 minutos, Solano diverte a plateia, convida-a a ser protagonista do espetáculo e a faz refletir. "O Figurante nos coloca uma pergunta muito pertinente para o tempo em que vivemos”, afirma Solano. “Você é protagonista ou figurante de sua própria história?"