Há 93 anos, saía nos Estados Unidos um livro da escritora negra Nella Larsen que citava algumas vezes o Brasil. Asfixiado pelo preconceito e a violência racial, cercado por histórias terríveis de linchamentos promovidos por organizações secretas de supremacistas brancos, um médico negro, pai dois meninos, tenta convencer sua bela e adorável esposa a se mudar para um lugar onde os pretos são respeitados e existe democracia racial.
Este lugar é a maior nação da América do Sul: o Brasil. Naquela época, esse conceito era um bem-sucedido produto de exportação brasileiro, difundido para atrair imigrantes. Ao refletir sobre o sucesso do médico e a pressão racial sobre a família, a narradora observa: “Aquela estranha e, a seu ver, fantástica ideia de Brian viajar para o Brasil que, embora não dita, ainda vivia dentro dele; como essa ideia a assustava e… sim, a infamava de raiva!”
Mais adiante, descreveu a intenção de sua mulher – protagonista da história – lutar contra o racismo: “Podia voltar a pensar em maneiras de manter Brian ao seu lado, em Nova York, pois ela não iria para o Brasil. Pertencia àquela terra de arranha-céus. Era estadunidense. Brotou daquele chão e não seria arrancada dele. (...) Brian também pertencia àquele lugar. E tinha um compromisso com ela e com os filhos”.
Não se sabe ao certo de onde a autora tirou a ideia de o Brasil como um "país sem racismo", uma vez que a propaganda pretendia atrair imigrantes europeus. Mas, ao que parece, o tema circulava com desenvoltura no seu país. Quase um século depois, só existe a certeza de que quem criou a ilusão se equivocou ou a concebeu com exagero e outros propósitos.
Curiosidade à parte, De passagem ganha tradução no Brasil pelo respeitado selo inglês Penguin, parceiro da brasileira Companhia das Letras, e merece ser celebrado como um dos grandes livros do século XX. É tão atual, bem escrito e estruturado, além de cativante, que se encaixa em todas as exigências para ser reconhecido como clássico. E é, sem dúvida.
O livro esquecido por tanto tempo voltou ao mercado após a ótima adaptação cinematográfica Identidade, lançada pela Netflix, em 2021, dirigida por Rebecca Hall e estrelada por Tessa Thompson e Ruth Negga. No romance – e no filme também –, a trama gira em torno do universo de duas mulheres que se reencontram por acaso em um hotel depois de 12 anos – quando ainda eram adolescentes.
Irene Redfield e Clare Kendry têm algo em comum: ambas são mulheres negras de pele clara que podem se passar por brancas. O marido da primeira, Brian Redfield, é um médico negro que dá conforto à família, mas mantém-se preso à vida no gueto. A segunda é casada com John Bellew, um tipo de agente bancário internacional.
São mães, mas suas vidas tomaram rumos diferentes por causa do racismo. No encontro de Irene com Claire, a alegria virou uma conversa tensa, quando a primeira percebe que a amiga adotara hábitos de pessoas brancas para enganar o marido racista. Claire passou a lhe telefonar, até que a amiga atende e é convencida a ir a um encontro com pessoas ricas, artistas e intelectuais – todos brancos.
O assédio de Clare para recuperar a amiga acaba em uma relação de atração e repulsa entre elas, quando Clare inicia um romance com o marido de Irene, enquanto acontecem episódios que discutem o racismo do lado de fora da casa da família.
Há passagens de profundo impacto narrativo dentro do universo feminino, quando, por exemplo, Irene tem de lidar com a traição do marido e da amiga: “Verdade, ela havia deixado de tentar acreditar que ele e Clare se amavam e ainda assim não se amavam, mas pretendia se agarrar às aparências do casamento para conservar a vida estável e segura", escreve.
"Trazida para a beira de uma realidade repugnante, sua natureza meticulosa não recuou. Era melhor, muito melhor, compartilhá-lo do que perdê-lo por completo. Ah, se fosse preciso, ela poderia fechar os olhos. Ela poderia suportar. Era capaz de suportar qualquer coisa. E março estava chegando. Março e a partida de Clare.”
Decidida a reafirmar sua origem e raça, Clare inicia um perigoso jogo para enganar o esposo. Toda a dramaticidade da história está na ligação complexa e perturbadora de amizade, inveja, pertencimento e desejo sexual entre as duas amigas – insinuações bem ousadas para a época.
A intenção da autora é mostrar, por meio de uma brilhante narrativa e de personagens bem construídos, que a lealdade às próprias origens não é apenas um ato de orgulho, mas também de coragem. O resultado é uma obra-prima atemporal, “avançada e contestadora”, hoje reconhecida como marco do “colorismo negro”.
O livro constrói um retrato profundo sobre o quanto o racismo era forte e de que formas os negros tentavam sobreviver ou lidar com isso. Nelle chama a população oprimida a refletir sobre essa condição em passagens como a descrição de Gertrude, que também renegava a cor da pele.
“‘Não’, continuou Gertrude. ‘Para mim também basta. Nem se fosse uma menina. É horrível como a coisa pula gerações e surge de repente. Ora, ele disse, de verdade, que não se importaria com a cor da criança, se eu parasse de me preocupar com isso. Mas, é claro, ninguém quer uma criança escura’.” Ou no simples ato de se disfarçar os traços na hora de se arrumar: “Os lábios recém-maquiados se estreitaram, formando uma linha reta e fria”.
No ano em que morreu, em 1964, aos 73 anos, Nella Larsen ainda trabalhava como enfermeira. Natural de Chicago, com o sobrenome de batismo Walker, embora fosse uma das principais escritoras da Renascença do Harlem, de Nova York, para onde tinha se mudado em 1910, aos 19 anos, e trabalhou como enfermeira e bibliotecária, ela estava longe de ser uma escritora consagrada. O tempo lhe daria a condição de uma das escritoras mais enigmáticas dos Estados Unidos.
Isso se devia principalmente à cor negra da sua pele e como isso se refletia em seus escritos, pois era uma militante sutil e absolutamente genial. Nella tinha iniciado a publicação de seus escritos na década de 1920. Seu primeiro romance, Quicksand, saiu em 1928, e De passagem, no ano seguinte.
A autora recebeu a prestigiosa bolsa Guggenheim, além de ser condecorada com o prêmio William E. Harmon para trabalhos notáveis de pessoas negras e, mesmo assim, não teve o respeito que merecia pela qualidade literária desses dois livros. Tanto que, após não conseguir publicar seu terceiro romance, e na década de 1930 parou de escrever.
A escrita de Nella Larsen faz lamentar quantos livros ela certamente poderia ter escrito para consagrar a carreira de uma escritora acima da média, com uma riqueza vocabular incomum a quem leu bastante em sua formação para a escrita. Nas páginas de seu romance ela intercala os dramas familiares de personagens intensos com descrições refinadas de lugares e situações.
Como neste trecho: “Os automóveis estacionados no meio-fio eram um fogo dançante, e o vidro das vitrines exalava um brilho ofuscante. Nítidas partículas de poeira se erguiam das calçadas em chamas, picando a pele queimada ou derretida dos pedestres esmorecidos. Ali, a mais leve brisa parecia o sopro de uma chama alimentada por foles lentos”. Combinações de palavras, frases e sentidos que deliciam o leitor.
Serviço:
De passagem
Nella Larsen
Penguin-Companhia
168 páginas
R$ 44,90