Há alguns nomes que são essenciais para entender melhor como o Brasil foi aos poucos se tornando nação. O termo, ao contrário do que muitos pensam, tem uma complexidade que demanda ampla explanação. Por exemplo: seria a corrupção um elemento que dá identidade ao brasileiro? Assim como a culinária, a alegria do Carnaval, o sincretismo religioso, a paixão pelo futebol? Sua religiosidade?

Essas pessoas são os chamados intérpretes do Brasil, que deixaram obras de grande valor, como José do Patrocínio, Gilberto Freyre, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Roberto da Matta e Sérgio Buarque de Holanda, entre outros.

E para que servem essas obras no Brasil do século XXI, da era digital, da velocidade da notícia, das redes sociais e das polarizações ideológicas? Não é possível, por exemplo, estudar e definir políticas públicas sem entender a “cordialidade”, um dos conceitos de Sergio Buarque de Holanda mais famosos, que rege as relações sociais e de poder da elite no país.

Daí a importância de se descobrir um pensador que alguns conhecem apenas como o pai do cantor e compositor Chico Buarque e da cantora Miúcha.

Ele é autor de um livro capital para a história nacional: Raízes do Brasil, lançado em 1937 e que continua atualíssimo. Mas seu pensamento e suas ideias estão espalhados por diversos livros, além de artigos que publicou em jornais e revistas entre as décadas de 1930 e 1970.

Agora chega às livrarias uma síntese de seus escritos, Essencial: Sérgio Buarque de Holanda, com organização e introdução de Lilia Moritz Schwarcz e Pedro Meira Monteiro. O volume apresenta capítulos de seus mais importantes livros: História do Império, Literatura Colonial, O Espírito e a Letra, Livro dos Prefácios, Do Império à República, O Poder Pessoal, Raízes do Brasil, Visão do Paraíso e Monções

“Sérgio, em Raízes do Brasil, chama atenção para traços fundamentais dos brasileiros – misturar esferas públicas com privadas, pensar a política como lugar de família, a corrupção, problemas da administração e como nosso presente está lotado de passado, seja nas grandes estruturas agrícolas exportadoras seja na herança da escravidão”, disse Lilian Schwarcz ao NeoFeed.

Sérgio Buarque nasceu em São Paulo, em 1902, mas viveu duas décadas no Rio de Janeiro. Formado em direito, engajado no movimento modernista dos anos de 1920, desde cedo colaborou em importantes revistas e jornais, até se tornar professor assistente na Universidade do Distrito Federal. Aos 35 anos, publicou Raízes do Brasil, considerado um dos livros mais influentes da historiografia e da sociologia brasileiras no século XX.

Em 1946, então professor da USP, assumiu a direção do Museu Paulista da instituição, cargo que ocupou por dez anos – ajudaria a fundar o Instituto de Estudos Brasileiros nos anos 1960. Estudou na Alemanha e lecionou na Universidade de Roma em 1953-1954 e em 1956, quando teve sua tese aprovada – que deu origem a outro importante livro, Visão do Paraíso (1959). Aposentou-se de suas funções acadêmicas em 1968, em protesto contra a ditadura militar. Morreu em São Paulo, em 1982.

Raízes do Brasil se tornou seu livro mais conhecido e comentado. “Ele próprio dizia que era obra de ocasião, sem o rigor dos demais, pois sabia que sua vasta obra, oscilando entre a crítica literária e a história, ia muito além do homem cordial”, explicam os autores.

Aliás, é possível afirmar que o próprio Sérgio Buarque vai além da mitologia que se criou em torno dele, segundo eles. A antologia pretende, justamente, oferecer uma visão mais panorâmica dessa obra “complexa e multifacetada, repleta de ideias que vão e vêm, que se somam e às vezes se contradizem”.

Lilia e Pedro optaram por evitar a ordem cronológica, uma vez que os ensaios que reuniram, retirados de diferentes livros, podem ser lidos em qualquer sequência. Assim, iniciaram “pelo fim”, com um estudo sobre a “Crise do regime” imperial, que faz parte dos manuscritos deixados pelo autor e encontrados após sua morte.

Ao longo da década de 1970, meticuloso, Sérgio vinha reescrevendo as teses expostas no seu último grande estudo, Do Império à República, publicado em 1972 como volume 7 da História Geral da Civilização Brasileira, que ele próprio dirigia.

“O operário em construção e outros poemas” é descrito como um divertido prefácio a um livro do amigo Vinicius de Moraes. Escrito no fim da vida (a edição é de 1979, quando Vinicius também era vivo), tinha teor autobiográfico, pois relembrou os primeiros encontros que os dois amigos tiveram no Rio de Janeiro, assim como as noites regadas a bebida e música em Roma, Genebra, Paris ou Los Angeles, onde o poeta morou.

Os organizadores do livro lembram que a sensibilidade de Sérgio para estudar o Brasil e sua complexidade cobrou uma infinidade de pontos interessantes: “da política imperial à imaginação dos primeiros colonizadores, portugueses e espanhóis; da literatura que valorizava o espaço colonial e idealizava o indígena à violência impingida a essa mesma paisagem e sobre o corpo do colonizado; da preocupação com as formas literárias à herança do modernismo; do encontro entre história e literatura”.

Não só isso. Analisou com inteligência da “descoberta” documental dos sertões bravios por contraposição aos nossos litorais, passando pelas recordações pessoais e pelas redes de amizade; da nossa sempre incompleta democracia à centralidade da escravidão para a história brasileira. “Tudo isso, e muito mais, encontra-se nestas páginas que trazem um aperitivo, uma isca para o interesse e curiosidade acerca da ampla e variada obra de um intérprete fundamental do país”, destacam.

Ao NeoFeed, Lilian explica que a geração dos anos de 1930 da qual Sérgio Buarque de Holanda fez parte foi a dos grandes intérpretes do Brasil. Dessa turma se destacaram Caio Prado Junior e Gilberto Freyre. Depois, vieram outros importantes como Abdias Nascimento, Guerreiro Ramos, Lélia Gonzales e, atualmente, Suely Carneiro.

“São pessoas que, com a sua maturidade, conseguem projetar visões sobre um país – de alguma maneira, é uma tentativa de formar conteúdo, de generalizar o que são características muito particulares do nosso país”.

Por outro lado, prossegue ela, ajudam a pensar que um país de proporções continentais é de muita diversidade, mas tem questões estruturais que nos unificam, conseguem indicar caminhos, sinalizar trincheiras, indicar veredas e trajetórias.

Serviço:
Essencial
Sérgio Buarque de Holanda
Editora Penguin-Companhia
392 páginas
R$ 69,90