A cada cinco anos, o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP) reformula sua exposição de longa duração: aquela que faz um recorte do acervo, hoje com cerca de 10 mil peças.
“Essa leitura sempre parte de questões do nosso tempo. Determinamos os eixos temáticos diante do contexto atual, permeado por crise climática, pandemia, instabilidade política e ascensão de ideologias fascistas. Não tinha como resultar em uma mostra leve”, disse ao NeoFeed Ana Magalhães, diretora da instituição.
Ela assina a curadoria de Tempos Fraturados ao lado de Helouise Costa, Marta Bogéa, Felipe Chaimovich, Priscila Arantes e Rodrigo Queiroz, exposição que marca os 60 anos da instituição.
Além desse princípio, que definiu os núcleos Inconsciente (não) livre, Guerra fria, Resistência, Êxodo, Retrato, Apropriação e Violência, mais um elemento pautou a seleção de 300 obras distribuídas no 6º e 7º andares do MAC.
Trata-se de 11 dos 13 trabalhos doados em 1946 pelo empresário, filantropo e político americano Nelson Rockefeller (1908-1979) inicialmente para o MAM e que, 17 anos mais tarde, dariam origem à coleção do Museu de Arte Contemporânea da USP. Na mostra em cartaz, estão identificados discretamente, com etiquetas pretas.
A procura atenta vale a pena. “Em 60 anos, essas artes foram pouco vistas pelo público”, comenta Ana, que cita dois exemplos: “a tela A Aula, de Jacob Lawrence, por exemplo, coloca uma questão candente para nós hoje”, prossegue, referindo-se ao artista afro-americano notabilizado nos anos 1940 pelas pinturas que denunciavam a segregação da comunidade negra nos Estados Unidos.
Parte do núcleo Resistência, a cena mostra um professor com uma turma de alunos, todos negros. Próxima dela, O Porta-Estandarte, de Robert Gwathmey, exposta pela primeira vez agora, retrata de forma caricata um burocrata que ostenta símbolos de justiça e igualdade diante de uma forca. “Uma imagem muito contundente e violenta”, observa a diretora.
Ainda no eixo Resistência, o MAC não se furta a expor A Negra, de Tarsila do Amaral, bastante criticada por movimentos feministas negros pela representação que faz de uma mulher preta. Por isso mesmo, vale a leitura do texto acessível pelo QRCode ao lado da tela.
Nele, a pesquisadora Ana Paula Simioni, referência em estudos de gênero na história da arte e parte do conselho consultivo de Tempos Fraturados, descontrói a leitura simplificada da obra. “Essa imagem é feminina, mas de uma feminilidade que recusa qualquer idealização, qualquer apelo erótico”, escreve.
Outros contextos e associações
Mais um expoente do modernismo brasileiro, A Boba, de Anita Malfatti, aparece no agrupamento Inconsciente (não) livre, que reúne outras duas doações de Rockefeller, assinadas pelos surrealistas Max Ernst e André Masson. Elas convivem com os registros fotográficos de Alice Brill, que documentou a produção, muitas vezes anônima, de pacientes internados no Hospital Psiquiátrico do Juqueri.
“O exercício de curadoria nos aponta também caminhos para as novas aquisições. A produção realizada dentro desses centros é, sem dúvida, uma de nossas lacunas”, reconhece Ana. “Assim como a de artistas indígenas, cuja temática é abordada no eixo Apropriação.”
São inúmeros os cruzamentos com situações e fatos corriqueiros no noticiário ao longo da exibição. Em Retrato, na série Minha Mãe Morrendo, desenhada por Flávio de Carvalho em 1947, a expressão da boca da personagem impressiona. Impossível não associar as imagens ao período mais cruel da pandemia de covid-19, quando pessoas morriam por não conseguirem respirar.
Já no núcleo Violência, o vídeo Jogos de Poder filma a artista Regina José Galindo submetendo-se a uma sessão de hipnose em que recebe ordens humilhantes e, em transe, é incapaz de reagir. Em tempos de recordes de feminicídios no Brasil, a performance de 2009 se mostra bastante atual.
Novos tempos
Sobre os 60 anos, a diretora ressalta: “o museu atualizou rapidamente suas coleções e soube se posicionar. Somos o primeiro do país a colecionar fotografia, videoarte, registros de performance, livros de artista". Em 2015, diz ela, "começamos a coleção digital, inclusive com a aquisição de nossa primeira NFT, de Gustavo von Ha, visível em nosso perfil no Instagram. Como expor isso é a próxima etapa”, adianta.
A preocupação com o público se justifica. Em 2012, a mudança da sede no distante campus da USP para o atual edifício, assinado por Oscar Niemeyer e parte do complexo do Ibirapuera, logo revelou sua melhor consequência: o salto no número de visitantes de 40 mil pessoas por ano para 400 mil.
O aumento se refletiu na atratividade dos espaços dedicados ao restaurante, no rooftop, e ao café, no mezanino, operados desde 2018 pela iniciativa privada em modelo de concessão. Em 2002, o contrato rendeu certa de R$ 773 mil ao museu. Essa receita colabora para o equilíbrio financeiro da instituição, cujo orçamento anual de cerca de R$ 30 milhões é custeado pela USP.
Entre 2005 e 2021, parte desse dinheiro público destinou-se aos cuidados com as coleções de arte moderna e contemporânea do Banco Santos, que ficaram sob a guarda do MAC após a falência da empresa. Porém, há dois anos, o museu viu-se obrigado a devolver os cerca de 1700 itens após ação movida pelos credores.
“Foi um revés muito grande, pois dedicamos 15 anos a um trabalho de transferência, tratamento, documentação, catalogação e apresentação das coleções ao público”, fala a diretora.
“O leilão das peças atingiu preços exorbitantes e a contrapartida ao museu foi irrisória. Faltou consciência desses credores sobre a sustentabilidade das instituições públicas de cultura”, critica. Se Rockefeller houvesse agido assim, o MAC nem existiria.