Em fevereiro deste ano, o empresário Abilio Diniz venceu um processo contra a galeria Pintura Brasileira, em São Paulo, que teria vendido a ele dois quadros alegadamente produzidos pelo artista Alfredo Volpi (1896-1988), cuja autenticidade era atestada por uma das filhas do artista, Eugenia Maria Volpi Pinto.
Diniz, que em 2017 passou a contestar a autenticidade das obras, havia comprado as duas telas – intituladas "Bandeirinhas com Mastro" e "Bandeirinhas" – em 2007, por R$ 69 mil. Estima-se que cada uma das pinturas valha de R$ 1 milhão a R$ 2 milhões.
Recentemente, a batalha judicial ganhou um novo capítulo quando o marchand Marcelo Barbosa, da galeria Pintura Brasileira, recorreu da decisão, lastreado por um parecer do perito científico Douglas Quintale, que aponta, entre outros aspectos, um conflito de interesses: relações profissionais entre o perito e seu assistente, nomeados pelo juiz, e os assistentes indicados por Abilio Diniz, que são, por sua vez, do Instituto Volpi.
Além disso, segundo o parecer de Quintale “não existe nestes autos prova técnica idônea de que os quadros em questão sejam falsos” e o laudo pericial encomendado pela Justiça “carece de rigor técnico”. Quintale sugere que “a autenticidade ou a falsidade dos quadros em questão [...] deveria ser atestada após procedimento científico”.
Midiático, o caso envolvendo Diniz e os Volpi está longe de representar uma prática recorrente no Brasil de refutação judicial da autoria no mercado de arte. O maior impedimento estaria na ausência de uma lei brasileira específica para falsificações de obras de arte.
Diante de uma suspeita de contrafação, lança-se mão das leis de direitos autorais, depende-se de flagrância do ato de falsificação, entre outros aspectos legais que dificultam o controle do problema no país. Além disso, os processos são onerosos.
Para tentar traçar um panorama das falsificações de obras de arte no Brasil, o NeoFeed entrevistou advogados, agentes do mercado de arte secundário (galerias e leiloeiros) e representantes de instituições – diretamente ligadas aos herdeiros e espólios de artistas ou não –, cuja principal atuação para a coibir falsificações é a catalogação e o fomento à visibilidade de seus legados.
Com quase 40 anos de experiência no mercado secundário, o leiloeiro e perito judicial James Lisboa afirma que as falsificações de obras de arte ganharam tração com a melhoria da qualidade gráfica das reproduções em livros e catálogos de exposição e a ampla disseminação dessas imagens na internet.
“Os catálogos e livros feitos nas décadas de 1960 e 1970, por exemplo, eram em branco e preto, os custos eram altos e faltavam recursos técnicos”, lembra. “Hoje, você tem publicações com imagens em alta definição, com precisão de cores e detalhes mais fieis aos trabalhos originais. E isso serve de ferramenta para quem quer eventualmente fazer obras falsas e colocá-las no mercado”.
Lisboa reverencia o Projeto Portinari, criado em 1979, como o precursor da proteção do patrimônio de quem detém obras autênticas no Brasil. “Ele serviu de parâmetro de registro para que se tenha referência quando uma tela de Portinari está sendo negociada. Quando as pessoas vão comprar, perguntam se o trabalho está registrado no catalógo raisonné do artista [lançado em 2004], e isso é um pedigree, uma segurança para quem vende e compra”, afirma.
Para Noélia Coutinho, coordenadora de acervo do Projeto Portinari, o problema das falsificações no Brasil costuma aumentar quando há exposições ou qualquer evento em que se divulgue um pouco mais o nome do artista. Ela cita, por exemplo, uma mostra recém-inaugurada na galeria Frente, com obras de Portinari, em São Paulo. Segundo ela, a exposição fez com que surgissem, em todo o Brasil, desenhos que as pessoas tentaram autenticar junto ao Projeto.
Somente neste mês, Noélia afirma ter identificado três falsificações em São Paulo, a convite de marchands. Há cerca de uma semana, por exemplo, ela se deparou com uma reprodução da tela “Os retirantes” – pertencente ao acervo do Masp – um pastiche das figuras ali representadas. Houve a tentativa de autenticá-la como sendo um estudo para obra, que valeria ao menos R$ 100 mil.
Para Clara Gerchman – diretora do Instituto Rubens Gerchman, que cuida da gestão do acervo de seu pai, e cofundadora e gestora do acervo do Instituto Tunga – as falsificações surgem junto a janelas de oportunidade, sejam elas um eventual boom do conjunto de obra de um artista ou porque se considera que dado acervo está desassistido.
“Como eu comecei a trabalhar sobre o acervo de meu pai já em 2008, no mesmo ano de sua morte, e cercada de muita informação, isso ajudou a me posicionar com força no mercado para inibir”, pondera.
Clara argumenta ainda que, em leilões idôneos, obras falsas eventualmente surgem em meio a trabalhos autênticos, o que dificulta o monitoramento. E ela aponta um agravante recente. “De 2008 a 2010, nos meus primeiros dois anos de atuação junto ao acervo, eu havia mapeado cerca de 30 casas de leilão online no Brasil. De 2021 para 2022, esse número ultrapassa 120”, conta.
Os leilões online surgiram como alternativa aos presenciais durante a pandemia. No entanto, segundo James Lisboa, nesse período, empresas formadas ao longo de apenas seis meses ou um ano se multiplicaram no mercado, realizando leilões pela internet.
“E elas colocam à venda cópias de determinados artistas a preços vis. Mas se uma obra que vale R$ 50 mil é posta a pregão por R$ 5 mil, o vendedor, o proprietário não sabem qual o valor real? Somente um cliente desinformado ou que se acha mais esperto, faz a compra pelo preço inferior”.
Sob condição de anonimidade, um especialista conta que uma casa de leilões paulistana, fundada nos anos 1970, teve décadas de atuação idônea, mas de uns anos para cá “descambou”, e "tudo que ela vende hoje é grosseiramente falso".
Em sua página na internet, há ofertas de obras por valores considerados irrisórios, como telas de Di Cavalcanti por R$ 70 mil a R$ 80 mil, que custariam, por suas dimensões, acima de R$ 500 mil. O site elenca ainda nomes como Guignard, Djanira e Burle Marx, entre outros.
O Instituto Djanira foi fundado há dois anos e meio, por Eduardo Talois, detentor dos direitos da obra da pintora. No momento, Talois está levantando orçamentos de projetos, para submetê-los à Lei Rouanet e, após a captação, iniciar o processo de catalogação. Segundo ele, existe uma grande circulação de obras falsas da pintora, tanto em leilões quanto em galerias, em todo o país.
Ele conta que, durante o auge da Lava Jato, foi procurado por instituições museológicas para verificar a autenticidade de obras apreendidas durante as operações Nenhuma era original da Djanira.
"Dificilmente você se deparar com uma cópia, mas sim um quadro que tente expressar a ideia de uma escola djaniriana. Você encontra elementos que apareceram em uma determinada pintura dela e são reproduzidos ali, de maneira muito tosca, na tentativa de se confirmar a atribuição”, conta Talois, que estima em torno de R$ 300 uma tela autêntica da pintora.
Victor Gomes, advogado da Associação de Galerias de Arte do Brasil (AGAB), afirma que, no Brasil, a proteção aos compradores de obras é basicamente igual à dada a uma pessoa que adquiriu qualquer tipo de bem no mercado, de um tênis a um aparelho eletrônico falso. Não existe, portanto, um crime específico de falsificação de arte.
“Temos a lei de direitos autorais, que protege a propriedade intelectual dos autores, em geral. E há mecanismos que garantem seus direitos diante de determinada obra. Isso pode funcionar se alguém fizer uma cópia supostamente idêntica a um quadro existente, por exemplo", diz.
"Em pintura, isso é muito difícil. Então, as quadrilhas não fazem isso, e, sim, criam trabalhos com elementos que remetem à linguagem de dado artista e a ele atribuem”.
Para que haja punição efetivamente, explica Gomes, é preciso que existam provas de que os participantes da cadeia de falsificação agem com intuito criminoso, que somente pode ser enquadrado, no Brasil, como estelionato.
“Como a pena é muito baixa, de um a cinco anos, e é muito difícil demonstrar o comprometimento de todos numa quadrilha, muitas vezes acaba não havendo, por parte de autoridades, a disposição necessária para desmontá-las”, afirma.
Diante desse quadro, Luis Guilherme Vieira, advogado do Projeto Portinari, pondera que a criminalização da conduta não resolve o problema porque o Direito Penal deve ser reservado para situações de extrema gravidade.
Essa matéria deve ficar restrita à esfera do Direito Civil, contemplando dano moral e danos materiais. Para o advogado, Estado e sociedade devem, antes de qualquer coisa, definir o que é arte, para poder criar uma solução.
“Penso em formar um grupo, que envolva quem detém os direitos autorais e um plantel de pessoas com expertise em arte, e levar um projeto ao governo federal e aos ministérios para propor uma agência reguladora", diz.
Sua proposta é que ela funcione como uma instância à qual um juiz ou delegado de polícia pudesse recorrer diante de um caso suspeito de falsificação. "Afinal, estamos falando de patrimônio histórico brasileiro, que deve ser protegido”, defende Vieira.