Antes de viajar para Nova York, em 2021, Nádia Taquary consultou os búzios com seu pai de santo e o Ifá, oráculo do povo iorubá. Buscava orientação diante do medo de viver em outro país, falar outro idioma e, sobretudo, habitar um lugar onde ainda não existia como artista.
Tanto o jogo quanto o oráculo revelaram o caminho de Ogum, pedindo para que ela transformasse o medo em força. Na mitologia iorubá, Ogum é o orixá da guerra, do ferro, da tecnologia e dos caminhos. Em Nova York, Nádia notou que a cidade é toda atravessada por trilhos de trem.
“Lembro dos meus orixás e da comunhão que um deles me pediu: entender que o medo é uma energia, uma força”, conta ela em entrevista ao NeoFeed. “Eu precisava transmutar essa energia, que poderia me paralisar, em uma energia que me moveria.”
Inspirada pelos trilhos de ferro e pelos orixás Exu (senhor dos caminhos) e Ogum (o abridor de caminhos), Nádia criou uma obra imersiva: uma sala espelhada onde trilhos de trem se multiplicam infinitamente. Dentro dessa instalação, que é ao mesmo tempo obra e expografia, acontece a exposição Ọ̀nà Irin — Caminho de Ferro.
A mostra reúne 22 trabalhos de diferentes períodos. Depois de passar pelo Museu de Arte do Rio (MAR) e pelo Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (MUNCAB), em Salvador, a exposição está agora em cartaz no Sesc Belenzinho, em São Paulo. A artista também participa da 36ª Bienal de São Paulo, com a obra Ìrókó: A árvore cósmica.
Hoje, aos 58 anos, Nádia diz que nasceu como artista aos 40. Ao atravessar um período de luto, descreve ter sentido uma “grande desconexão de tudo”. Foi então que se voltou ao estudo da joalheria afro-brasileira e uma lembrança de infância emergiu.
Nascida em Salvador, ela recorda o fascínio pelos adornos do pai. “Ele tinha um colar diferente de tudo o que eu encontrava para comprar”, conta. “Todas as vezes que a gente ia sair, ele colocava o colar em mim e dizia que tinha sido da bisavó dele, depois da avó, depois dele e que, um dia, seria meu.”
Em uma visita ao Museu Carlos Costa Pinto, na capital baiana — conhecido pelo acervo de joias brasileiras —, ela reconheceu num colar exposto algo muito familiar. “Eu entendi o que era aquela joalheria que o meu pai me apresentava”, diz.
As primeiras designers
O colar de família era parte de uma história maior: um exemplar da joalheria afro-brasileira produzida entre os séculos 18 e 19, e que, por muito tempo, se chamou de “joia de crioula”. Essas peças eram feitas e usadas por mulheres negras livres e libertas na Bahia, símbolos de poder e afirmação.
Nádia se aprofundou na história da joalheria afro-brasileira e nas trajetórias das mulheres que a criaram. “Foram elas as primeiras designers de joias do nosso país”, defende ela.
Durante os estudos, a artista começou a criar suas próprias peças. As primeiras surgiram a partir das figas. As peças chamaram a atenção de algumas arquitetas, que passaram a encomendá-las para usar em projetos de interiores.
Logo, Nádia decidiu ampliar a escala. Inspirada nos patuás, desenhou pingentes em tamanho agigantado, ligados por seis cordões de um metro de Lagdibá — fios de contas ebanizadas, adornos do orixá Omolu. A obra recebeu o nome de Abre Caminhos (2013).
O trabalho chamou a atenção da arquiteta Ana Paula Magalhães, que o incorporou em um projeto da Casa Cor Salvador. Nádia o considera o ponto de partida de sua vida como artista. E, fiel ao título, a obra de fato lhe abriu os caminhos — tanto no mundo das artes quanto no reconhecimento de sua própria linguagem.
Em 2013, Nádia Taquary apresentou a individual Balangandã: uma poética da esperança, no Museu de Arte da Bahia, em Salvador. Dois anos depois, a mostra viajou para Paris, ocupando a Galerie Agnès Monplaisir.
Em 2018, participou de Histórias Afro-Atlânticas, no MASP e no Instituto Tomie Ohtake — exposição eleita pelo jornal The New York Times como a melhor daquele ano no mundo. Suas obras integram acervos de instituições como a Pinacoteca do Estado de São Paulo e o Pérez Art Museum Miami (PAMM), nos Estados Unidos.
Figuras míticas
Outro pilar de seu trabalho é a mitologia iorubá. Embora já tivesse uma vivência de terreiro, Nádia buscou cursos que lhe permitissem se aprofundar nos mitos e no papel da mulher nas sociedades africanas pré-coloniais. A artista mergulhou no universo das Yabás (orixás femininas), das Geledés (sociedades de mulheres) e das Iyàmís (as mães ancestrais).
Começou então a dar rostos a essas figuras míticas. Sem ter feito uma aula de escultura, descobriu na modelagem do barro um gesto natural. “A modelagem saiu intuitivamente, como se eu já soubesse fazer aquele rosto, aquela boca”, conta.
Nádia aprendeu que as entidades que ganham forma em suas mãos têm “vontades” também. “Estou sempre diante de algo que eu imagino. Mas até nascer eu ainda tenho dúvidas de quem será exatamente”, diz.
Depois de esculpir as Yabás Iemanjá e Oxum, a artista sentia-se confiante. “Essa terceira vai ser maravilhosa”, pensou. Mas nada do que modelava para o penteado ficava bom. Raspou o barro e tentou uma última vez. Ficou perfeito.
Deixou o molde na fundição e, algum tempo depois, recebeu um telefonema: uma explosão na oficina derreteu o cabelo da escultura. "Não teria como colocar ali um cabelo”, explica a artista, que decorou a peça com pintas brancas, peninha Ekodidé e palha.
A mostra inclui também outras obras que homenageiam o feminino ancestral. Entre elas, destacam-se Orikis — esculturas em madeira com rostos em bronze, que remetem tanto às Geledés quanto à dificuldade de muitos brasileiros em reconhecer-se como parte da diáspora africana nas Américas.
Há ainda as figuras míticas da Mulher Pássaro, da Mulher Peixe e outras que habitam o imaginário da artista. Nos gestos de Nádia, a mitologia iorubá se afirma como pensamento e a fé se revela como linguagem.