Ao atravessar a porta da galeria Mendes Wood DM, em São Paulo, um caminho ladeado por espadas de São Jorge, de um lado, e de Santa Bárbara, do outro, se apresenta. No final do percurso, dois troncos rodeados de pregos — que remetem aos pelourinhos — guardam uma oferenda a Exu, guardião das encruzilhadas. É Situação terreiro: descansa (2025), obra que abre a mostra Nascimento, de Antonio Obá, recebendo os visitantes e lhes oferecendo a travessia.
Obá já sabia que a individual se chamaria Nascimento mesmo antes de ver tudo montado na galeria. Depois de olhar para o alto em Revoada (Pinacoteca de São Paulo, 2024) e pisar no chão em Finca Pé: Estórias da Terra (Centro Cultural Banco do Brasil, com itinerância por Brasília, Minas Gerais e Rio de Janeiro), o artista volta-se agora para o que acontece entre o céu e a terra.
“É o desdobramento de uma pesquisa que venho fazendo a partir desse momento de gênesis. E, sobretudo, dos desdobramentos que ocorrem a partir do momento em que você chega ao mundo sujeito às benesses e às intempéries, aos ônus e bônus”, explica Obá ao NeoFeed.
“Esse lugar não é preciso. Por vezes, me soa como um grande lance de sorte, pensando na sorte de maneira ampla — não só como algo venturoso, mas também como o seu oposto”, complementa.
Nas 39 obras, o artista trata a noção de que nascer e existir é caminhar entre escolhas, imprevistos e também um lance de sorte — tudo envolto em uma aura de mistério e fabulação.
O percurso traz cenas prosaicas, como a de meninos correndo atrás de galinhas e rompendo uma cerca rumo a um céu dourado, em Situação terreiro: estripulia (2025); e reflexões sobre o acaso, a exemplo da instalação Situação terreiro: acesse (2025), em que búzios são lançados ao ar antes de caírem e apontarem uma leitura possível do destino.
Essa investigação sobre o imponderável ganharia, poucos dias depois do vernissage, uma camada inesperada. Sua obra Alvorada — Música Incidental Black Bird (2020) foi arrematada em um leilão da Sotheby’s, em Nova York, por US$ 1,02 milhão (cerca de R$ 5,4 milhões).
“Foram semanas muito intensas. É maravilhoso ver um trabalho ganhando a vida dele e percorrendo caminhos tão bonitos. Mas, em contrapartida, são situações alheias ao artista”, afirma Obá, observando que o que permanece real é lidar com os incômodos que a criação impõe: as paredes brancas que restam no ateliê depois de montar uma exposição.
“O caminho se faz ao caminhar. Essa é a realidade, uma realidade que te impõe uma certa humildade. No sentido de [ao ver o ateliê vazio] assumir para si: ‘Cara, eu não sei para onde eu vou agora’”, comenta o artista, que, aos 43 anos, já traçou um percurso sólido, com obras nos acervos da Tate Modern, Reina Sofía, MASP, Pinacoteca, Pinault Collection, Inhotim e Pérez Art Museum Miami.
“Voltar e pegar o que ficou para trás”
Nascido em Ceilândia, a 35 quilômetros de Brasília, Obá encontrou nas artes plásticas um caminho ainda no Ensino Médio. Seu talento evidente para o desenho fez com que fosse encaminhado para a Sala de Recursos Multifuncionais — política pública que oferece, nas escolas estaduais, atendimento especializado para alunos com deficiência, transtornos ou altas habilidades, caso de Obá. Foi ali que ele teve seu primeiro contato com as tintas que selariam o seu destino.
No início da carreira, o artista mirava grandes nomes europeus, entre eles o pintor Francis Bacon, cuja excelência técnica reconhecia como um horizonte possível. Mas, com o tempo, percebeu que precisava voltar-se para dentro, às próprias origens, para encontrar uma linguagem verdadeiramente sua. Uma das práticas que o conduziram a esse retorno foi a capoeira angola.
“Eu acabei tendo encontros que me colocaram em situações em que certas percepções me alcançaram, e que não tinham a ver exatamente com uma questão visual. Por exemplo, um cheiro que me trazia uma memória e me colocava num lugar muito consciente do que eu queria fazer”, explica. “Esses referenciais encontravam lugar nessa historiografia brasileira, nessa espécie de genealogia pessoal, em que me coloquei num processo de errância.”
Esse movimento de retorno — íntimo, errante e guiado por memórias sensoriais — faz eco em Encantado, videoperformance de 2024. Nela, uma figura veste um traje de algodão cru que lembra uma armadura e caminha sob sol forte por uma paisagem de vegetação rasteira.
O peregrino carrega um cajado marcado por uma sankofa, o símbolo africano que lembra que “nunca é tarde para voltar e buscar o que ficou para trás”. Ele caminha até alcançar uma vereda onde corre um rio, entre árvores verdejantes. Ali, se desfaz das roupas e do cajado e se funde à natureza.
Varrer o chão, caminhar com a cachorra
No ateliê em Brasília, onde trabalha hoje em tempo integral, Obá aparece para a entrevista moldado pela luz de uma grande janela de onde se vê um jardim ao fundo. O artista chegou a flertar com uma mudança para São Paulo, em 2023, mas compreendeu que sua obra também se abastece da luz e da paisagem do Centro-Oeste.
O horizonte largo e o céu que pesa sobre a vegetação rasteira do cerrado, sempre iluminada pelo sol forte, infiltram-se na paleta e na construção das formas em suas telas, como Lumiar – Paisagem Sertaneja (2025). “É uma luz que se impõe de forma muito preponderante”, afirma.
Durante anos, dividiu suas horas entre a docência e a produção artística. Só recentemente permitiu-se o gesto radical de dedicar-se inteiramente ao próprio trabalho — e, com isso, dar-se “um tempo de errar”.
Há dias em que vai ao ateliê, mas não toca em um lápis ou pincel. Passa horas ali lendo, em silêncio, ou varrendo o chão. “A criação exige isso”, diz. “O próprio trabalho impõe a você aprofundamento. Seja técnico, seja conceitual, seja poético — isso tudo requer tempo.”
É uma meditação ativa, um momento de processamento. Quando precisa “voltar à realidade”, como ele descreve, recorre ao que há de mais ordinário, como caminhar com sua cachorra Cherrie ao fim da tarde. Essas atividades abrem passagem para o gesto poético que se concretiza nas pinturas, como O que eu aprendo quando caminho com os meus cães (2025).
Obá não teme o risco que precisa assumir diante da parede branca. Faltando quatro dias para a abertura, pintou um mural de treze metros para o qual não fez qualquer rascunho prévio. “É esse condicionamento de estar com o poro aberto, com o corpo oferecido para a ideia”, diz ele. Estar aberto para o nascimento do novo, para o acaso e para a encruzilhada.