Nunca se deve subestimar um mapa. E não se trata aqui de algum tipo de mapa do tesouro, mas daquele de verdade, que diz bem mais, quase sempre, do que parece. E pode revelar-se, por exemplo, um documento capaz de resolver uma crise territorial entre países, estados ou municípios. Ou tirar dúvidas de historiadores sobre marcação territorial.

Essa forma de ver os 522 anos de história do Brasil instigou a professora de teoria da história e de história moderna na Universidade Federal do Paraná (UFPR) Andréa Doré e a historiadora e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Junia Ferreira Furtado.

As duas organizarem o livro Uma cartografia da história do Brasil em 25 mapas, da editora Companhia das Letras, que acaba de chegar às livrarias. A obra foi dividida entre 25 autores que se dedicaram a um mapa cada.

O volume compõe um estudo inédito feito por pesquisadores e pesquisadoras das mais diferentes áreas para pensar o Brasil a partir de sua cartografia.

De um planisfério (representação de um globo ou de uma esfera em superfície plana) de 1502 a softwares que acompanham via satélite o desmatamento na Amazônia neste começo de século XXI, das organizações de comunidades quilombolas ao Plano Piloto de Brasília dos anos de 1950

Para as autoras, "os mapas não falam só sobre o que eles representam. Por vezes, dizem mais sobre o que calam, e seus silêncios se tornam eloquentes".

Escrevem Andréa e Junia que o debruçar sobre cada um dos mapas pode revelar seus significados – por vezes bem claros, outras, quase ocultos. Por isso, nenhum dos componentes de um mapa é escolhido por acaso.

“América portuguesa, Brasil holandês, Companhia de Jesus, contrabando, revoltas rurais, povos originários, imigração, epidemias e ditadura – estes são alguns dos grandes temas abordados no volume”.

A organizadora Andréa Doré, professora de teoria da história e de história moderna na Universidade Federal do Paraná

A obra sai como referência sobre a cartografia do Brasil, com atlas, cartas de afluentes, cartazes e mapas que registram o passado do país para contar aos leitores uma nova história a partir de detalhes – ou da ausência destes.

Na entrevista exclusiva ao NeoFeed a seguir, Andréa Doré explica todo o processo de produção do livro e como a cartografia tem se tornado uma ferramenta importante para historiadores consolidarem a história do Brasil.

Um mapa sempre diz mais do que parece e até mesmo pode levar à revisão de algum episódio importante, certo? Poderia citar algum exemplo nesse sentido?
Sim. Não saberia citar um mapa que tenha causado um efeito generalizado na nossa história. Mas diferentes mapas em diferentes áreas tiveram grande impacto na época em que foram feitos. O Planisfério de Cantino não foi publicado, mas não é difícil imaginar o efeito de se descobrir terras ignoradas como era a faixa do continente americano que o mapa mostra. Um mapa de satélite que indica a devastação da região da floresta amazônica, por outro lado, deveria também gerar um impacto terrível na sociedade.

Planisfério de Cantino, 1502. Biblioteca Estense, Modena, Itália

Vocês começaram do universo de quantos mapas e de quais acervos para fazer a seleção de mapas do livro?
Nosso ponto de partida foi, de forma combinada, um conjunto de mapas e um conjunto de temas. Partimos de alguns que são considerados fundamentais e já bastante conhecidos e estudados, como o Planisfério de Cantino, o mapa de Marcgraf, o Mapa das Cortes, o Mapa do Império, o esboço do Plano Piloto de Brasília. Alguns outros, menos conhecidos ou que chamaram nossa atenção, foram associados a temas e encomendamos o capítulo a estudiosos do assunto.

Pode dar alguns exemplos?
Como o de Franklin Roosevelt ao mapear o antes chamado Rio da Dúvida, o atlas etnográfico de Nimuendajú, o mapa ferroviário do Brasil e Uruguai e o mapa da Fome, de Josué de Castro. A outra estratégia foi, a partir de temas importantes da história do Brasil, encontrar outros mapas ou convidar historiadores e historiadoras especialistas nesses temas para indicar mapas, como os indígenas, os das revoltas rurais na Primeira República, levantamentos do desmatamento etc.

E o que vocês fizeram a partir disso?
Esses dois pontos iniciais correspondem, na verdade, às duas abordagens que propusemos à análise. Ou seja, por meio dos mapas podemos conhecer determinado fenômeno ou acontecimento histórico e, ao mesmo tempo, o mapa, ao ser questionado e estudado, traz elementos da forma como esse determinado fenômeno ou acontecimento foi tratado, representado pela sociedade da época.

"O mapa, ao ser questionado e estudado, traz elementos da forma como esse determinado fenômeno ou acontecimento foi tratado, representado pela sociedade da época"

Vocês trabalharam com total liberdade de escolha?
A princípio, não nos impusemos qualquer restrição. Os critérios principais eram a sua importância histórica e a sua capacidade de trazer para os autores e depois para os leitores elementos ricos para a compreensão dos temas da história do Brasil.

Algum mapa inédito, nunca publicado antes, foi incluído no projeto?
Temos mapas impressos que nunca tinham sido estudados e agora estão disponíveis e acessíveis, como o mapa ferroviário do Brasil e Uruguai, que foi publicado nos anos de 1940, com uma finalidade prática e de propaganda, mas estava, digamos, esquecido nos arquivos, como várias outros que o livro explora. Os indígenas também estiveram presentes apenas em artigos científicos e são muito pouco conhecidos no Brasil, para citar alguns exemplos.

Pode dizer um ou dois exemplos de informações históricas que foram descobertas na produção dos textos a partir dos mapas?
Posso citar uma constatação que percorre a maior parte dos mapas estudados: os mapas na história do Brasil sistematicamente apagaram a presença dos povos indígenas. Nos primeiros mapas que reproduzimos, produzidos no século XVI e início do XVII os indígenas aparecem, ora como os que extraem e carregam pau-brasil, ora como canibais. Nos demais, os diferentes grupos indígenas estão ausentes.

"Uma constatação que percorre a maior parte dos mapas estudados: os mapas na história do Brasil sistematicamente apagaram a presença dos povos indígenas"

De que forma?
O território se apresenta como um espaço vazio, desabitado. Os mapas que resultam da exploração das terras, das negociações para a demarcação dos limites entre Espanha e Portugal, para a colonização no século XIX, para atrair imigrantes ou que retratam o desmatamento não consideram a existência dos povos indígenas. Soma-se a isso a raridade de mapas produzidos pelos próprios indígenas, como se pode verificar no capítulo dedicado a esse tema.

Isso aconteceu só com os indígenas?
Não. A pesquisa também nos fez constatar a ausência da população africana escravizada. Não há mapas do tráfico ou das rotas marítimas e portos por onde passavam esses africanos. Nesse caso, o capítulo dedicado aos quilombos pôde trazer uma das dimensões desses povos na história do Brasil.

"A pesquisa também nos fez constatar a ausência da população africana escravizada. Não há mapas do tráfico ou das rotas marítimas e portos por onde passavam esses africanos"

O que isso traz de informação?
Esses ausências são uma importante evidência de uma característica central da produção de mapas, serve aos grupos que estão no poder e por isso apresentam a imagem da realidade que lhe interessa.

Há algum meio de se aprender a ler mapas para quem é leigo ou faz pesquisas?
Sim. Um dos objetivos do livro foi justamente oferecer, por meio da experiência prática da análise de mapas, ferramentas aos leitores. As perguntas que os autores fazem a mapas específicos podem ser feitas para qualquer mapa.

Por exemplo?
Perguntas básicas como quem fez (o indivíduo ou a instituição), com que finalidade, quando foi feito e se foi difundido e mais complexas, como: eu sei que em determinada região existe ou não existe uma cidade, uma montanha, um rio. Por que o mapa representa essa região de forma diferente? As perguntas serão mais interessantes, mais complexas e poderão explicar o que o mapa mostra ou esconde quanto maior for o conhecimento sobre o contexto – o fenômeno ou o acontecimento – que o mapa quer reproduzir. Para o observador leigo, o convite é para que olhe os mapas de forma menos ingênua, que desconfie e questione o que está vendo. Para quem quer estudar mapas, é importante saber que o mapa sozinho não é capaz de esclarecer todos os interesses que o envolvem.

Os mapas são subestimados por nossos historiadores?
Tem aumentado no Brasil o número de historiadores (e geógrafos, sociólogos, arquitetos) e de estudantes que se interessam por mapas como fontes históricas que devem ser analisadas com rigor (como já se faz com outros gêneros de fontes). Nosso livro conseguiu reunir um número significativo de especialistas nesse tipo de fonte.

"É difícil superar a ideia de que o mapa é um espelho da realidade. Depois de desfazer essa ideia, é necessário também exercitar o olhar, as ferramentas de análise"

Acessar os mapas é algo mais restrito?
A dificuldade para uma maior difusão dos estudos que utilizem mapas não está propriamente no acesso, uma vez que muitos bancos de dados, de bibliotecas e arquivos, foram sendo digitalizados nos últimos anos. É difícil superar a ideia de que o mapa é um espelho da realidade e esta ideia está presente tanto entre o público leigo quanto entre os historiadores. Depois de desfazer essa ideia, é necessário também exercitar o olhar, as ferramentas de análise. É como aprender uma nova linguagem. É preciso praticar.

Serviço:
Uma cartografia da história do Brasil em 25 mapas
Andréa Doré e Junia Ferreira Furtado
Companhia das Letras; 1ª edição (18 outubro 2022)
464 páginas
R$ 169,90