Vencedor do prêmio Pritzker, o “Pulitzer da arquitetura”, o modernista Paulo Mendes da Rocha (1928-2021) costumava dizer: “Quem tem medo do centro tem medo da liberdade”. A liberdade de ocupar as ruas da cidade onde se vive, de andar de ônibus, metrô e bicicleta. A liberdade de ir a pé, respirar cultura e celebrar a diversidade.

O brasileiro das grandes cidades, em especial o de São Paulo, tende a ter horror ao centro. Medo dos espaços abandonados, dos pedintes e dos bêbados. Medo da violência, da pobreza e da desigualdade.

Em nome de uma suposta segurança, renunciamos àquela liberdade que apenas o centro pode nos proporcionar - “a coisa mais livre que pode existir para o homem de hoje”, como definia o arquiteto. Isolamo-nos nos condomínios dos bairros, monitorados por câmeras de vigilância, 24 horas por dia, sete dias por semana. Trancamo-nos nos automóveis blindados, das janelas seladas com insulfilme.

Só há uma maneira de reconquistar a liberdade esquecida nos prédios vazios do centro: ocupando-o. É o que o empresário Guil Blanche, de 33 anos, vem fazendo desde 2019, quando fundou a Planta Inc. A empresa dedica-se à aquisição de edifícios comerciais das décadas de 1950 e 1960 e à sua requalificação em empreendimentos residenciais. Quer melhor forma de vencer o medo do centro do que levar as pessoas para morar lá?

A obra mais recente é também a quinta da Planta: o icônico edifício Renata Sampaio Ferreira. Desenhado pelo arquiteto-engenheiro Oswaldo Bratke (1907-1997) em 1956 e tombado em 2012, o prédio acaba de ser reinaugurado.

Com projeto assinado pelo escritório Metro Arquitetos, responsável também pelo anexo do Museu de Arte de São Paulo (Masp), o “novo” Renata dispõe de 93 apartamentos, em cinco configurações – de estúdios de 25 metros quadrados a duplex de dois a três quartos.

Como em todos os seus empreendimentos, Blanche fez do térreo do Renata um complexo cultural e gastronômico. “No urbanismo, é sabido que a segurança vem com gente na rua”, diz ele, em conversa com o NeoFeed. A partir de março, o espaço recebe um café, um bar e uma brasserie. O grande charme do Renata, porém, está no terceiro andar.

“No urbanismo, é sabido que a segurança vem com gente na rua”, diz Guil Blanche, fundador da Planta Inc.
“No urbanismo, é sabido que a segurança vem com gente na rua”, diz Guil Blanche, fundador da Planta Inc.

Lá, foi construído um centro de lazer com academia, sauna, solário e piscina. No reflexo da água, duas joias da arquitetura paulistana; o Copan, de Oscar Niemeyer (1907-2021), e o Terraço Itália, do alemão Franz Heep (1902-1978). Até terminar o verão, nos finais de semana, estrelas da gastronomia brasileira, como Helena Rizzo e Janaina Rueda, se revezam no comando do restaurante Parador.

O “clube” do Renata não está disponível apenas aos moradores, funcionando também no sistema “day use”. Um salão adjacente pode ser alugado para festas ou qualquer outro tipo de evento.

O modelo “multifamily”

O custo total do projeto, da compra à requalificação do prédio, ficou em torno de R$ 60 milhões. A multinacional americana Blueground, especializada em locação flexível, opera o condomínio, e a proptech brasileira Tabas oferece os aluguéis em sua plataforma.

O modelo de negócios segue a filosofia “multifamily”. Novidade por aqui, mas bem consolidado nos Estados Unidos, o conceito vem atraindo o interesse dos fundos brasileiros de investimento imobiliário. Apesar de destinado à moradia, o empreendimento pertence à categoria de imóveis comerciais, já que todas as unidades estão registradas sob uma mesma matrícula –ou seja, têm um único dono.

Além do Metro, a Planta trabalha em parceria com alguns dos escritórios de arquitetura mais celebrados da contemporaneidade, como o MMBB, o André Vainer e o Vapor. Os apartamentos são alugados mobiliados, para, no mínimo, dois dias de permanência. Os preços variam de R$ 3 mil a R$ 30 mil mensais, conta Blanche.

Os projetos da Planta são investidos por fundos, como o FII Planta Desenvolvimento Urbano e Retrofit, em sociedade com a gestora Valora. No portifólio do empresário, uma das obras foi apoiada pela Central Capital, gestora de private equity imobiliário. A Planta tem hoje cerca de R$ 400 milhões, sob gestão.

“O pedacinho mais vibrante”

O interesse de Blanche pelo centro paulistano se concentra na Vila Buarque, “o pedacinho mais vibrante da região”, como ele define. Até os anos 1940, o bairro era residencial. Em pouco tempo, virou comercial, quando os prédios de escritórios começaram a ser erguidos.

Na década de 1970, a construção do Elevado Presidente João Goulart (antigo Costa e Silva), o “Minhocão”, disseminou a degradação. Os negócios então migraram para a avenida Paulista, para a Brigadeiro Faria Lima e, mais recentemente, para a Luís Carlos Berrini. E os edifícios da Vila Buarque esvaziaram.

Os apartamentos da Planta são alugados mobiliados, como os do edifício Renata (Crédito: Emília Rodrigues)
Os apartamentos da Planta são alugados mobiliados, como os do edifício Renata (Crédito: Emília Rodrigues)

Há uns quinze anos, porém, a badalação da Vila Madalena e de Pinheiros encareceu o metro quadrado e os empreendedores da economia criativa passaram a ocupar “aquele pedacinho” do centro. Os premiadíssimos chefs Jefferson e Janaína Rueda estão entre os pioneiros da agora efervescente Vila Buarque.

Aos Dona Onça e Casa do Porco, à lanchonete e sorveteria Hot Pork e ao frigorífico Porco Real se seguiram outros restaurantes, bares, casas de show, danceterias teatros, karaokês e lojinhas descoladas. Com muitas faculdades e escolas nas proximidades, a Vila Buarque é tomada pela inquietação juvenil dos estudantes.

“Tivemos a sensibilidade de perceber o potencial de conversão dos escritórios vacantes em residências e o processo de transformação pelo qual a região está passando”, afirma Blanche. “Resolvemos entrar no bairro de forma oportunística; surfar essa onda.” Fazer da Vila Buarque o que foi feito do Soho, em Nova York, nos anos 1990, por exemplo.

Como surfista, ele é um ótimo empresário. Antes de ser inaugurado, o edifício Renata já estava 100% ocupado. No portfólio da Planta, constam cinco prédios já prontos, acabados e habitados. Outros três estão previstos para 2024.

A convivência plural

Os oito edifícios somam 510 unidades residenciais, das quais 217 já foram entregues. Dessas, 150 estão ocupadas. Além disso, são 33 lojas, entre restaurantes, padaria, lavanderia e academia.

O edifício Magdalena Laura levou espécies nativas das matas brasileira para o centro de São Paulo (Crédito: Gabriel Cabral)
Magdalena Laura: espécies das matas brasileiras no centro (Crédito: Gabriel Cabral)

Dito de outra forma, quase 39 mil metros quadrados preenchidos por gente de todo tipo –solteiros, alguns jovens, outros nem tanto, casais e famílias com suas crianças, gatos e cachorros. E o frenesi típico da convivência plural toma conta da Vila Buarque.

A sustentabilidade também. “Como não mexemos na estrutura dos imóveis, a requalificação emite 70% menos gás carbônico do que a construção de um prédio do zero”, comemora Blanche. Sim, tem mais essa vantagem. Aos poucos, a vida volta a pulsar no centro.

Com vista para o Minhocão, hoje revitalizado e transformado em parque suspenso, o FSMJ foi a primeira empreitada da Planta.

Pertencente à Santa Casa de São Paulo, ficou abandonado, nos últimos 20 anos, até ser comprado por Blanche e seis amigos, em 2019, por R$ 4 milhões.

Além dos apartamentos, agora o edifício abriga no térreo a pizzaria Divina Increnca, o restaurante Cora e uma das livrarias mais bacanas da cidade, a Gato sem Rabo, dedicada a obras escritas por mulheres, de propriedade de Johanna Stein, esposa do empresário.

“O prédio mais musical do Brasil”

Próximo ao Copan, a fachada escalonada do Magdalena Laura ganhou generosas floreiras e levou espécies nativas das matas brasileiras para a selva de pedra paulistana. Em breve, inaugura no térreo o Teatro Next, um clássico da cena cultural paulistana, do início dos anos 2000, com o humorístico “Terça Insana”. A cantora Maria Rita ocupa um dos 51 apartamentos do condomínio.

Já o “L” da configuração do União Continental foi pintado, uma parte, de bordô e a outra, de azul-claro. O cinza do Arinda ganhou detalhes em laranja e verde. Aliás, esse prédio, “o mais musical do Brasil”, conforme o empresário, tem muita história para contar.

No passado, o edifício Arinda sediou a gravadora Odeon Records (Crédito: Gabriel Cabral)
No passado, o edifício Arinda sediou a gravadora Odeon Records (Crédito: Gabriel Cabral)

Nos anos 1960 e 1970, foi sede da Odeon Records. João Gilberto (1931-2019) gravou lá. Adoniran Barbosa (1910-1982) era amigo do porteiro e, nos finais de semana, quando o funcionário precisava sair, o compositor assumia seu posto.

Mais recentemente, o Arinda abrigou a Copacabana Discos, a gravadora dos sertanejos. As salas por onde passaram Zezé di Camargo e Luciano, Chitãozinho e Xororó, foram convertidas em 32 apartamentos, de tamanhos entre 25 e 100 metros quadrados.

Na cobertura, agora há lounge, solário com ducha, cozinha gourmet, lavanderia e academia, além de um salão para festas e reuniões de trabalho.

Nas contas de Blanche, há, na capital paulista, 215 prédios com potencial para requalificação. Apenas na Vila Buarque, estão 10% deles. Alguém ainda tem medo do centro?