Virar o bolso do avesso, senso comum, era recuperar o último centavo lá no fundo do compartimento. Mas há questões muito mais profundas do que ter ou não dinheiro ao alcance da mão.

A professora Hannah Carlson, da cadeira de história do vestuário da Rhode Island School of Design, mudou sua percepção sobre os bolsos desde que teve de abandonar seu escritório as pressas numa evacuação por uma ameaça de incêndio.

“Eu me vi andando pela rua e percebi que não podia fazer uma ligação telefônica ou comprar um café. Tudo o que eu precisava estava em uma bolsa pendurada em uma cadeira em algum lugar do escritório”, conta a escritora ao NeoFeed. “Sempre esperamos ter algo útil em nossos bolsos. Mas se é esse o caso, por que as roupas femininas frequentemente não têm bolsos?”

Desde aquele episódio “sem lenço, nem documento”, Carlson mergulhou na história do vestuário para encontrar sua resposta. Os anos de pesquisa resultaram no recém-lançado Pockets: An Intimate History of How We Keep Things Close (“Bolsos: uma história íntima de como mantemos coisas por perto”, ainda sem tradução e data de lançamento no Brasil).

O livro discute questões como política de gênero, segurança, sexualidade, poder e privilégios em sete capítulos distribuídos em 320 páginas repletas de ilustrações históricas. O Wall Street Journal definiu o livro como "uma combinação viva de evidências visuais, literárias e documentais”. A historiadora de Harvard, Jill Lepor, por sua vez, chama a obra de “relato cativante e surpreendente que vira o bolso do avesso em uma história social e política.”

A autora se aprofunda no debate sobre a inclusão de bolsos nas roupas femininas na indústria da moda. Ela explica que na era Medieval, tanto homens quanto mulheres carregavam seus itens pessoais em sacolas, até que há cerca de 500 anos, as roupas finalmente ganharam bolsos para facilitar a vida ─ apenas a dos homens.

Carlson destina um capítulo inteiro para discutir as razões pelas quais as mulheres ficaram de fora do clube dos bolsos. O argumento de “preservar a silhueta feminina” é usado há séculos para que as mulheres utilizem roupas com tecidos mais finos e menos funcionais, o que vale até hoje para calças jeans com bolsos falsos, exemplifica. “Eu mesma, nunca tive uma jaqueta com bolso na parte interna.”

bolso histórico
À esquerda, gráfico com todos os bolsos de roupas masculinas. À direita, os bolsos simbólicos no croqui de Schiaparelli

Os bolsos foram costurados pela primeira vez nas calças masculinas. Tendo se estabelecido nos calções, os acessórios continuaram a proliferar no terno, onde se tornaram padronizados à medida que o costume passou de um produto artesanal para industrializado. “A inclusão de bolsos faz parte dos negócios em roupas masculinas”, explica Carlson.

No livro, a autora relaciona a ausência dos bolsos com conceitos como poder e liberdade. Sem bolsos, as mulheres não podiam carregar moedas para comprar coisas ou objetos para se defender, como faziam os homens. No lugar dos bolsos discretos, explica Carlson, as mulheres receberam bolsas de mão visíveis a todos, ficando bem mais expostas.

A autora pondera que enquanto as calças, camisas e jaquetas masculinas nunca saíram das fábricas sem bolsos grandes o suficiente para carregar com conforto itens como chaves, carteira e até pequenos livros, as mulheres ainda esperam que a indústria as contemple com a mesma comodidade.

“Grande parte do setor de roupas femininas ainda prioriza a estética em detrimento da utilidade, presumindo que as mulheres carregarão bolsas”, diz. “Ainda assim, também é verdade que cada vez mais marcas estão promovendo os bolsos femininos como um atrativo extra”, admite.

Na indústria da moda, ativistas que cobram as marcas pela inclusão de bolsos nas roupas femininas têm se proliferado e ganhado mais voz nos últimos anos. O Pockets For Women, por exemplo, é um site que reúne as poucas peças femininas com bolsos disponíveis nos e-commerces.

Fundada em 2022, a plataforma já conseguiu atrair grandes varejistas como a Marks & Spencer e White Stuff, que expandiram seus catálogos de vestimentas com bolsos.

O avanço também pode ser percebido nas passarelas das semanas de moda, que estão mais sensíveis aos apelos online das mulheres, muitas vezes acompanhados da hashtag #GiveMePocketsOrGiveMeDeath.

Na London Fashion Week de fevereiro, jaquetas volumosas e saias com bolsos enormes chamaram atenção no desfile da Saint Laurent. Em Paris e Nova York, calças cargo com bolsos baixos também ficaram em alta na temporada de primavera.

A autora fez do livro também uma espécie de coletânea de microhistórias sobre os bolsos. Ao mesmo tempo que ela traça uma linha cronológica sobre a origem e popularização do acessório nas vestimentas, Carlson introduz causos super curiosos.

O livro, sem edição no Brasil, está disponível na Amazon

“Ao contrário dos zíperes, botões e presilhas de cinto, os bolsos não nos ajudam a vestir, tirar ou ajustar o caimento das roupas. Eu queria explorar o quanto de nosso senso de autossuficiência é possível graças a essa variedade de compartimentos ocultos”, explica.

Ela conta sobre como a chegada do bolso por volta de 1550 provocou comentários e reações ansiosas na sociedade. Nos novos lugares "escondidos ao redor do corpo de um homem", ladrões e salteadores de estradas podiam esconder armas de pequeno porte.

O livro reproduz uma proclamação da Rainha Elizabeth I, que tentou banir as pistolas de bolso, bem como uma notícia de 1584 que retrata o primeiro assassinato de um líder político por arma de fogo.

Testemunhas observaram que o assassino fez uma pausa como se fosse colocar a mão no bolso para entregar uma carta ao Príncipe William, o Silencioso, mas, em vez disso, sacou uma pistola e atirou nele à queima-roupa.

Os bolsos também sinalizavam a posição social de quem tinha acesso a eles. Em anúncios de pessoas escravizadas nos jornais americanos, Carlson descobriu que as roupas dos escravizados não tinham bolsos, diferente das vestes dos escravizadores. Por essa razão, era comum os cativos costurarem bolsos nas próprias roupas para carregar objetos que facilitassem as fugas.

Ao pensar nas transformações da indústria da moda, pondera, uma evolução neste momento seria ter roupas com bolsos que coubessem celular e isso “independentemente do gênero.”