Saído da imaginação da americana Patricia Highsmith (1921-1995), Tom Ripley, um dos impostores mais queridos da literatura, ganha mais uma versão em carne e osso. Já foram cinco filmes, além de adaptações para TV, que sempre fascinam o público com as manobras do sujeito que, diante da oportunidade de se dar muito bem, se torna um mestre na arte de mentir, enganar e imitar quem quer que seja.
Ainda que o espectador não goste de admitir, ele provavelmente torcerá para que o vigarista se safe de todas as encrencas em que se mete ao longo dos oito episódios de “Ripley”, série recém-chegada ao catálogo da Netflix. E por que é tão difícil resistir ao sujeito manipulador que nunca demonstra arrependimento, sobretudo quando suja as mãos de sangue?
“Como Ripley não é um matador profissional, ele não é muito bom ao cometer seus crimes. E por fazer tudo de um jeito um pouco desleixado, sentimos que é exatamente como faríamos no lugar dele. Talvez isso explique nos identificarmos tanto com Ripley”, contou Steven Zaillian, criador, roteirista, diretor e produtor executivo da série.
“Ripley apresenta muitas características que todos nós temos, no que diz respeito aos seus desejos, ao seu orgulho e às suas necessidades. Ele só precisa de mais coisas materiais do que nós”, disse Zaillian, rindo, em encontro virtual com jornalistas, do qual o NeoFeed participou.
O que Ripley tem de diferente de nós, na visão de Zaillian, é o talento para a trapaça, sem perder a simpatia ou o charme. “Ele é um mentiroso profissional, incapaz de dizer a verdade”, afirmou o criador da série, bastante fiel à obra original de Patricia Highsmith, principalmente no recorte psicológico do protagonista.
A escritora marcou uma época ao inaugurar a série de livros de ficção policial com o personagem em 1955, com “O Talentoso Ripley”. Até então, não era comum na literatura americana apresentar um golpista que não era punido por seus atos.
Ripley sempre sai das enrascadas impune, mesmo que, algumas vezes, ele pareça estar muito próximo de ser pego.
Em todos os livros, é sempre assim. O trapaceiro que nunca recebe o castigo que merece ganhou mais quatro títulos da autora: “Ripley Subterrâneo” (1970), “O Jogo de Ripley” (1974), “O Garoto que Seguiu Ripley” (1980) e “Ripley Debaixo d'Água” (1991).
“Eu reluto em diagnosticar o personagem, embora muitos o considerem um sociopata”, contou o ator Andrew Scott, que também participou do painel virtual de “Ripley”. É ele quem encarna na série o golpista nova-iorquino contratado por um magnata para convencer o herdeiro, Dickie Greenleaf (Johnny Flynn), a voltar de sua longa temporada na Itália para os EUA.
Mas assim que Ripley chega à bela costa amalfitana, ele se encanta por Dickie e por seu estilo de vida hedonista, o que o instiga a arquitetar um plano próprio – incluindo se passar por Dickie, para tomar posse de sua fortuna. Marge Sherwood (vivida por Dakota Fanning), a namorada de Dickie, é a única que desconfia logo de cara das intenções de Ripley, que faz tudo para se infiltrar no círculo dos privilegiados.
“O personagem se tornou tão perene e icônico porque continuamos levantando muitas perguntas sobre ele. E respondê-las seria o mesmo que reduzi-lo. Muitas vezes, consideramos um personagem fascinante, assustador e incômodo justamente por não termos muita informação sobre ele”, comentou Scott.
O formato de série ajuda o espectador a mergulhar na psique de Ripley, mesmo que a intenção aqui não seja decifrá-lo. “Para fazer do jeito que eu queria, sabia que precisaria de muito mais tempo, comparado ao que as outras adaptações tiveram”, disse Zaillian, referindo-se aos filmes baseados em Ripley. Entre os mais conhecidos estão “O Sol por Testemunha” (1960), com Alain Delon na pele do vigarista, e “O Talentoso Ripley” (1999), com Matt Damon no papel-título.
“Em duas horas, eu não conseguiria explorar tantos detalhes da história e do personagem e ainda desenvolver as mudanças nas relações entre os personagens”, comentou o diretor, mais interessado em acessar o que passa pela cabeça de Ripley a cada momento. É isso que aproxima a série de um character study, obra que se aprofunda no estudo do personagem.
Em um dos melhores episódios, Ripley passa o tempo todo tentando se livrar de um corpo – depois de assassinar um tipo inconveniente com golpes na cabeça, usando um cinzeiro pesado de vidro. Dá quase para acompanhar o seu pensamento, tentando eliminar todas pistas que levariam até ele. Inclusive um esguicho de sangue da vítima que quase passa despercebido em quadro pendurado na parede de seu apartamento, o local do crime.
