Há cerca de duas semanas, o fotógrafo alemão Boris Eldagsen se recusou a receber um prêmio da competição de fotografia Sony World Photography Awards 2023, pela obra “O eletricista”. Eldgasen revelou que havia gerado a imagem – um retrato de duas mulheres em preto e branco – por meio de inteligência artificial (IA).

Rapidamente a imagem viralizou na internet e levantou questões acerca da autoria de uma obra do gênero, afinal, a composição de Eldagsen havia sido feita a partir de um banco de imagens.

Eldagsen, que tem cerca de 30 anos de carreira, alegou que fizera um teste com a organização do prêmio, para ressaltar o quanto eles não estavam preparados para lidar com esse tipo de trabalho.

Ao mesmo tempo, sugeriu que a premiação organizasse uma categoria exclusiva para a arte gerada por IA, uma tendência cada vez mais pacificada – no mercado, em instituições de arte e até na academia – mas cuja originalidade e validade artísticas ainda esbarram na questão dos direitos autorais sobre as imagens originais, usadas para compor a nova obra.

Em entrevista ao NeoFeed, Eldagsen defende que não importa como uma obra de arte foi produzida. A única questão que conta, diz ele, é se o trabalho é forte o suficiente para desencadear no espectador “um impulso para uma viagem interior”. Para ele, como artista, cada ferramenta, cada técnica com a qual ele possa atingir esse objetivo é de igual importância.

“Idealmente, o espectador não pergunta ‘o que o artista quer nos dizer com isso?’, mas, sim, ‘o que olhar para uma obra desencadeia em mim? Que sentimentos, memórias, pensamentos? E por quê’?", indaga.

No dia 3 de maio, a partir das 16h, Eldagsen participa de uma live promovida pelo Festival Internacional de Fotografia de Porto Alegre – o FestFoto – com a participação do fotógrafo brasileiro Claudio Edinger.

Ao NeoFeed, Edinger afirma que Boris, ao devolver o prêmio, deu “um golpe de mestre”, porque hoje não se fala de outro assunto e que a sua criação é “linda, segue instruções precisas, só peca pelos dedos estranhos de uma das mulheres”.

Obra de Refik Anadol, em exposição no Museu de Arte Moderna de NY
Refik Anadol no Museu de Arte Moderna de NY

“Se o cara tivesse conseguido duas modelos de verdade, num estúdio, naquela luz com aquelas expressões, teria conseguido resultado semelhante. Então, não vejo problema algum.” Quando surgiu a câmera fotográfica em 1839, lembra ele, “ninguém menos que o poeta e gênio Baudelaire disse que aquele instrumento mecânico jamais produziria arte”. Edinger é um entusiasta das intervenções tecnológicas sobre a fotografia, mas ainda não fez qualquer experimento com IA.

Para gerar arte por meio de inteligência artificial é preciso acessar, em plataformas numa nuvem, bots – como Midjourney, Dall-E ou Stable Diffusion – em que o artista insere, numa caixa semelhante à de uma ferramenta de pesquisa, os chamados prompts, as instruções para IA criar uma composição com seu banco de imagens.

A partir da primeira proposta oferecida pelo bot, o artista faz novos pedidos, até alcançar o resultado desejado. É aí que, em princípio, ele tem a chance de deixar a sua marca e revelar sua excelência artística.

Inteligência artificial na arte

No mercado de arte, há uma tendência crescente de aceitação. Durante a última edição da feira Art Dubai, em março, a arte gerada com inteligência artificial foi uma das principais atrações no setor de arte digital.

Uma das estrelas foi o turco Refik Anadol, cujos trabalhos foram vendidos em média por US$ 330 mil – mais de R$ 1,6 milhão. Até meados de abril, Anadol apresentou uma instalação no Museu de Arte Moderna de Nova York em que usou inteligência artificial para interpretar e transformar a coleção da instituição. Havia filas quilométricas para ver o trabalho.

"The Curator" de Irisa Nova, artista também criado por inteligência artificial

No fim de março, foi anunciada a abertura da primeira galeria dedicada exclusivamente a AI-art, a Dead End Gallery, em Amsterdã, na Holanda. Mas a galeria não representa artistas – esses também são gerados por inteligência artificial e batizados pelos donos do espaço, Paul Bookelman e Constant Brinkman, que atuam como curadores das obras geradas por IA.

A obra mais cara de seu portfólio chama-se The Curator, de autoria da AI-artist Irisa Nova, e custa € 3.000, cerca de R$ 16,5 mil. Para eles, o interesse vem crescendo, e a qualidade do que vem sendo produzido é muito diversa.

As instituições também vêm abraçando a arte gerada por IA. No Brasil, a Bolsa ZUM/IMS completou dez anos e incorporou, pela primeira vez, um projeto envolvendo arte gerada por inteligência artificial, de autoria de Igi Ayedun. As obras de Igi podem ser vistas até 30/7 na exposição “Entre nós: dez anos de Bolsa ZUM/IMS”, no espaço Pivô.

No trabalho intitulado “Eclosão de um sonho, uma fantasia”, a artista "entrega sua imagem ao insondável universo dos algoritmos, ao mesmo tempo em que tenta protegê-la formalmente com pedidos no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. A pesquisa continua com um software que produz gradação de cores usando programação de texto e produzirá imagens a partir de impulsos elétricos neurais, superando a centralidade da visão ocular", segundo o texto dos curadores.

“Entre nós: dez anos de Bolsa ZUM/IMS”, na Pivô

Daniele Queiroz, uma das curadoras da mostra, conta que já há alguns anos a organização da Bolsa vem repensando o entendimento acerca da fotografia, ampliando sua compreensão como linguagem, passando a aceitar artistas que também pensam imagem como audiovisual, por exemplo.

“Quando a Igi apresentou seu projeto no ano passado, reforçou nossas discussões acerca dos caminhos que a imagem tem tomado, das possibilidades de criação de uma imagem que não passa necessariamente pela câmera”, explica Daniele.

Advogado especializado em propriedade intelectual em ambientes digitais, Pedro Ferraz Fracchia lembra que a legislação de direitos autorais no Brasil é de 1998, “época em que computador e internet não eram popularizados” no país. Segundo ele, é preciso criar uma lei robusta e específica sobre inteligência artificial.

Fracchia conta que há, no entanto, uma tendência mundial de se pensar numa regulamentação da IA, um marco legal. A partir desse ponto, diz ele, entenderemos com mais clareza como isso vai se relacionar com a propriedade intelectual, seus impactos sobre os direitos autorais. Mas ainda é preciso pensar nas questões de ética e deixar claro qual o grau de responsabilidade das plataformas que geram ou distribuem esses conteúdos.

Para o professor de design gráfico da Unicamp Sergio Venancio, que em seu doutorado na USP pesquisa as relações entre artes e inteligências artificiais, uma máquina não cria nada, ela gera. E o trabalho entre o artista e a máquina se aproxima mais de uma cocriação.

“O software gera imagens e, ao mesmo tempo, eu estou num momento cíclico ali com um software, julgando a produção dele e redirecionando o software para que ele melhore a composição, produza as imagens de acordo com a intenção artística”.

Obra criada com IA com autoria de Igi Ayedun

Head de projetos e co-fundador da consultoria de arte Act., Fernando Ticoulat é um entusiasta da arte gerada por inteligência artificial e cita um trabalho do projeto Google Arts & Culture, envolvendo bots, que são de grande valia para a própria História da Arte: a recriação, a partir de fotos em preto e branco, de um tríptico, intitulado “Medicina, Jurisprudência e Filosofia”, do pintor austríaco Gustav Klimt, que fora completamente destruído durante a Segunda Guerra.

Ticoulat acredita que estamos próximos de um novo ponto de inflexão nessa controvérsia, quando forem desenvolvidas as chamadas superinteligências artificiais, bots independentes das instruções inseridas por um ser humano.

“Falam que havia três coisas que não poderiam fazer com inteligência artificial para garantir que ela fosse segura. A primeira, não conectar com a internet; a segunda, não ensinar a programar e escrever código, e a terceira, era não ensinar afetos humanos. Essas três coisas já foram feitas”, conta.

“Por enquanto, não vejo problema o algoritmo virar artista, autor. O computador vai decidir que quer fazer uma composição, e ele vai gerar, com plena autonomia, uma obra de arte”.