As paredes da sala expositiva são de um vermelho intenso. Entre um conjunto e outro de obras, um véu branco quase transparente cria uma névoa suave, fazendo com que passado e futuro se embaralhem. Nesse tecido, a artista Sonia Gomes abriu cortes circulares e os alinhavou com fios soltos, criando janelas improvisadas. Um gesto que mistura improviso e decisão formal.
“No pensamento, era para fazer um buraco. Mas, na ação, foi só o corte. O pano caiu e, com a luz, deu aquele movimento. É na hora que tudo acontece. Não é projeto. É do sentir. Tá pronto, para”, conta Sonia em entrevista ao NeoFeed.
O que seria apenas expografia também ganha contorno de obra em Barroco, Mesmo, mostra que reúne cerca de 80 trabalhos de diferentes épocas da artista no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. O conjunto vai das primeiras bolsas, criadas quando Sonia ainda tateava sua própria linguagem, às peças recentes produzidas com tábuas reaproveitadas de uma antiga cerca da fazenda de um amigo — parte da série Meu amarelo é ouro (2023).
A mostra, que chegou à capital paulista em novembro, já passou por Ouro Preto e Salvador, cidades fundamentais para o Barroco brasileiro e revisitadas por Sonia enquanto pensava a exposição ao lado do curador Paulo Miyada. “O Barroco já está dentro da gente, especialmente de quem é de Minas”, diz a artista, nascida em Caetanópolis, a cerca de 100 quilômetros de Belo Horizonte.
“Visitei as construções barrocas pela primeira vez quando era adolescente”, lembra. “Hoje, como profissional, eu identifico meu trabalho com a estética barroca mesmo.” Em suas obras, Sonia lida com movimento, abstração, assimetria e torções — elementos que ressoam diretamente com a linguagem barroca.
A arquitetura da sala, marcada por uma parede curva, reforça essa leitura em espiral da trajetória da artista, que sempre gostou de torcer tudo aquilo que lhe parecia rígido demais. Desde menina, Sonia precisou inventar um espaço para si, torcendo regras, tecidos, narrativas.
Criada pelos avós, Sonia era a única pessoa negra da casa. Desde cedo, customizava roupas e acessórios como uma forma de se afirmar naquele ambiente — um gesto de autonomia que perpassa toda a sua trajetória artística. “Eu nunca deixei de ser eu”, diz.
Em busca de um futuro mais estável, foi estudar Direito. Mesmo na faculdade, marcada por um ambiente conservador e majoritariamente masculino e branco, ela não abriu mão do próprio estilo. Um professor chegou a apelidá-la de “instalação ambulante” por causa das roupas customizadas e dos colares de formas exageradas que ela mesma criava.
“Fui para a escola de Direito por oportunidade, porque eu precisava sobreviver”, conta. Paralelamente à vida de advogada, Sonia mantinha um ateliê onde produzia bolsas e acessórios completamente fora do padrão das lojas do ramo. Participava de feiras e eventos para vender suas peças, mas lembra que quase ninguém se interessava.
Na carteira, carregava lado a lado a carteirinha da OAB e a de artesã. “Se não fosse isso, eu enlouquecia”, diz. “Eu produzia as peças por uma necessidade. Não dizia que era arte, mas era o que me alimentava.”
Surpresa e erro
Durante muito tempo, Sonia não se via como artista: para ela, artistas eram os que sabiam pintar e desenhar figuras realistas — algo distante de seu próprio universo, sempre voltado para a abstração. Isso mudou quando começou a estudar na Escola Guignard, onde não precisava frequentar, por exemplo, aulas de desenho de observação. Ali, ela se sentiu finalmente livre para experimentar. “Eu descobri que estava fazendo arte”, lembra.
Aos 42 anos, participou de sua primeira exposição coletiva, Mão Afro-Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), em 1988. Depois disso, ficou uma década sem expor, retornando apenas em 1998, na mostra Processos Tridimensionais, na Casa da Saudade, em Belo Horizonte.
Sua carreira ganhou tração nos anos 2000, quando realizou as primeiras individuais. E a consagração veio em 2015, ao ser a única brasileira selecionada para a mostra oficial da 56ª Bienal de Veneza. Três anos depois, tornou-se a primeira artista negra viva a realizar uma exposição individual no MASP, com Ainda assim me levanto.
Hoje, seus trabalhos integram coleções internacionais de instituições como o Centre Pompidou, em Paris; a Tate Modern, em Londres; a National Gallery of Art, em Washington, D.C.; o MoMA e o Guggenheim Museum, em Nova York.
Sonia nunca parte de um projeto para criar. A obra nasce do seu encontro com a matéria. Súplica, da série Raízes (2018), vem do seu diálogo com o tronco de madeira. “Eu fico olhando. Ele é que sabe o que quer, o que agrega nele ou não”, diz.
No tronco, percebeu uma espécie de amputação: uma superfície lisa, pedindo um desenho. Ela desenhou. Depois, contornou o corpo de madeira com um fio de algodão. “É o material que convida”, afirma.
Em seu ateliê, chegam pacotes enviados por conhecidos e desconhecidos com roupas, toalhas de crochê, bordados, tecidos, botões que alguém não teve coragem de descartar devido ao afeto. Esses objetos chegam carregados de memória e encontram, no trabalho de Sonia, uma nova vida.
“O que me interessa são as marcas do tempo, a pátina do tempo, o movimento que já está naquela roupa”, explica. E a partir da história daqueles objetos ela cria novas.
Seu processo criativo é orientado pela surpresa, pelo acaso e pela experimentação.
Sonia costuma dizer que, na arte, não teme o erro. Ao contrário, o valoriza. “O erro é fundamental. Às vezes você acha que errou, mas acertou”, diz. E o trabalho só fica pronto quando Sonia encontra nele a beleza que vem acompanhada pelo sentimento de alegria. “A beleza me traz alegria, sabe?", ressalta.
Nos primeiros trabalhos, porém, o que guiava o gesto de costurar, torcer, amarrar era a busca pela cura “das dores do mundo”. “A mão cura”, diz. “Nós temos de nos curar de muitas coisas.”
Ela frisa que antes de ser mulher, é negra. “A dificuldade sempre foi essa. Quando eu chego no espaço, não está chegando a mulher; está chegando uma negra. Eu nunca fui a uma médica negra, nem a um médico neagro. Nós, negras e negras, temos muito ainda a conquistar”, explica
Dores e conquistas estão costuradas em seu trabalho. Mas a artista se recusa a dar textos e explicações sobre a obra ou legendas literais que induzem o espectador. Ela prefere manter a obra como aberta e deixar o público resolvê-la. “É e ir e sentir. Cada um que tem a sua interpretação”, conclui.