No meio da madrugada, a mãe tira a bebê do berço. Visivelmente assustada, com a criança no colo, calça os tênis, pega a bolsa e sai do apartamento. Tentando não fazer nenhum barulho, ela desce as escadas do prédio e, na rua silenciosa, coloca a menina na cadeirinha no banco de trás de seu Ford Fiesta azul. Ela liga o carro e parte.
Criada pela agência de publicidade Ogilvy Greece, em Atenas, a cena de 90 segundos retrata a fuga de uma vítima de violência doméstica e termina com a mensagem: “Não importa o carro que você dirige. Contanto que você vá embora”.
Lançada na semana passada e intitulada Escape Vehicle (“Veículo de Escape”), a campanha trouxe uma mensagem tão urgente que fez o filme viralizar internacionalmente, revelando uma surpresa: o anunciante não é a Ford, mas a Toyota Hellas, a subsidiária grega da gigante japonesa de automóveis.
“Sete: esse é o número médio de vezes que uma mulher volta ao seu agressor. Porque sair - e nunca mais voltar - é extremamente difícil”, diz ao NeoFeed Gianna Katopodi, diretora de criação da agência. “Enquanto isso, medidas de apoio às sobreviventes de violência de gênero vêm sendo sistematicamente reduzidas no mundo todo.”
Desta reflexão nasceu a ideia de incentivar a montadora a apoiar financeiramente a DIOTIMA, ONG fundada em 1989, que oferece serviços jurídicos e psicossociais gratuitos a mulheres vítimas de abuso.
Como conta ao NeoFeed Panos Sambrakos, diretor-geral de criação da Ogilvy Greece, a estratégia de destacar a marca concorrente tinha como objetivo causar perplexidade no público: “Espera: por que estou vendo o logotipo da Ford no porta-malas desse carro?” É neste momento de confusão que a frase final do filme ganha força.
“Desta forma, a Toyota demonstrou acreditar profundamente na causa, solicitando permissão à Ford para usar seu carro e sua marca, indo além das ‘regras’ não escritas da publicidade”, diz Sambrakos.
“Felizmente, a Toyota Hellas acreditou, tão fortemente quanto nós, que o que importa é que essas mulheres consigam deixar uma relação abusiva. Uma questão de vida ou morte; tão fundamental que todo o resto se torna irrelevante”, lembra Gianna.
Historicamente associado à ideia de proteção, o lar é território de risco para milhões de mulheres, em todo o mundo. Globalmente, 60% dos feminicídios são cometidos por companheiros, ex-companheiros ou familiares, informa a ONU Mulheres no relatório Feminicídios 2024.
A cada 10 minutos uma mulher é assassinada por alguém muito próximo a ela. No Brasil, esse índice é ainda maior — 80% das cerca de 1,5 mil vítimas registradas ao longo de 2024, mostra o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025.
Embora as denúncias estejam aumentando (0,7% de 2023 para 2024), é preciso considerar as subnotificações. Por falta de preparo, muitos policiais classificam o feminicídio como assassinatos comuns, diz Ana Lucia Sabadell, professora de Direito da UFRJ, especialista em Feminismo Jurídico e também psicóloga, em conversa com o NeoFeed.
Somado a isso, na violência doméstica, há o medo de que a denúncia não seja efetiva. Dezenove anos depois da Lei Maria da Penha, os avanços legislativos não se traduziram, na mesma velocidade, em proteção concreta. No ano passado, por exemplo, 52 mulheres foram mortas no Brasil enquanto tinham medidas protetivas ativas.
Nas últimas semanas, o Brasil assistiu estarrecido a uma sucessão de crimes brutais, como o de Tainara Souza Santos. Aos 31 anos, ela perdeu as duas pernas depois de ser atropelada e arrastada pelo ex-namorado, em São Paulo — estado onde são registradas duas tentativas de feminicídio por dia.
Para Isabella Matosinhos, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a prevalência das mortes no âmbito doméstico revela a falta de apoio do Estado às mulheres:
“Tem de ter políticas públicas que disponibilizem casa-abrigo para que essa mulher possa sair da situação de violência. Mas são necessárias políticas maiores, como a de equidade salarial, para que ela não dependa financeiramente do marido e não precise ficar em situação de violência”, afirma Isabella.
A economista e professora da UFF Hildete Pereira de Melo, referência no estudo de equidade de gênero, lembra que esses crimes são resultado de uma estrutura patriarcal profundamente enraizada na sociedade, em séculos de socialização masculina baseada no controle, na hierarquia e na ideia de posse.
“A gente falha porque os homens se acham donos das mulheres. São 200 mil anos de socialização masculina desse jeito. E isso se transmite até hoje”, diz Hildete.
Mas, lentamente, o Brasil avança. Um marco recente foi a decisão do STF, em 2023, que proibiu a tese da “legítima defesa da honra” em casos de feminicídio. Essa foi justamente a estratégia usada pelos advogados de Doca Street no assassinato de Angela Diniz, em Búzios, no Rio de Janeiro, nos anos 1970.
No primeiro julgamento, o assassino foi inocentado. O crime, tema do podcast Praia dos Ossos, da Rádio Novelo, e da série da HBO Angela Diniz: Assassinada e Condenada, só teve outro desfecho após a reação social, especialmente do movimento feminista.
Hildete foi uma das mulheres a fazer acampamento na frente do tribunal durante o segundo julgamento de Doca Street, quando ele foi condenado a 15 anos de prisão. “O caso de Angela foi um ponto de virada, mas também mostra que, quando não há mobilização, muita coisa passa.”
A Lei do Feminicídio, por exemplo, de 2015, sofreu uma alteração no ano passado. Antes, definido no âmbito do homicídio qualificado, o crime virou um tipo penal independente, com pena de 20 anos a 40 anos de reclusão. Mesmo assim, as estatísticas não diminuem.
A Itália recentemente endureceu a lei para prisão perpétua. Mas, as especialistas ouvidas pelo NeoFeed são unânimes: aqui, penas maiores não têm efeito prático. A resposta mais efetiva passa pela educação.
Para Ana Lucia Sabadell, levar a discussão para o âmbito da cultura, para o dia a dia, é crucial, pois ajuda a transformar a percepção coletiva sobre a violência de gênero.
E, assim, Escape Vehicle funciona como um lembrete incômodo, mas essencial: nenhuma mulher deveria ter de fugir de casa para sobreviver.